sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Agora


Deitado em sua cama, ouvia um saxofonista que acabara de conhecer, Joe Henderson, e tentava ritmar-se em mais uma leitura. Fechou os olhos e no escuro em que agora jazia meio adormentado viu círculos de luzes que lhe desferiam uma espécie de golpe de ansiedade. Estava tão calmo, porém, no momento mesmo em que se relaxava comodamente, a sensação oposta lhe pegava no contrapé. Lembrou-se do mar e dos campos de trigo, milho e café por onde, ainda jovem, fazia seus extravagantes exercícios. O aconchego da cama lançara-o de encontro a um espelho (e Mirror, Mirror era a canção que Henderson tocava) diante do qual parou e observou suas jovens rugas, seus poucos cabelos brancos, sua barba por fazer, seus olhos embebidos daqueles brilho meio fosco de quem recém acorda. Mas ele não havia sequer dormido quando viu os círculos de luzes espaventosos que giravam à sua frente como discos voadores. A abdução já tinha sido feita e o espelho agora o atraia ainda mais. Queria reconhecer-se. Era uma vontade absurda que agora o possuía: queria ter a posse sobre a capacidade de se sentir bem ou mal.
Engraçado como sua agitação não era algo que se percebesse em seu corpo como de costume, mas era velada, silenciosa, fatídica, como uma espécie de ressaca de um mar invisível, imaginário. Era talvez sua imaginação que o deixava daquela maneira. Tantas vezes já esteve contente com ela, graças ao anacronismo que lhe proporcionava, mas desta vez se sentia traído pois ela lhe deixava como que falsas pistas (e também não o eram as dos momentos de felicidade?) a incendiar-lhe o sono. Eram aqueles malditos círculos que acabara de ver. Por que teriam eles que se mostrar daquele jeito? Ele não entendia que eram apenas impressões que a luz do seu quarto deixava nas células de seu nervo óptico. Mas numa coisa agora penso eu que ele tinha razão: como simples impressões ópticas são capazes de nos retirar de um estado de espírito levando-nos diretamente para o oposto da sensação anterior? As sensações são assim, um prazer que sucede uma dor, uma angústia que tempera uma alegria. Entretanto, estou falando de sensações ou sentimentos? E ele voltava a pensar, como que a seguir o meu raciocínio, em que medida estariam os estados de espírito presos à mera relação com as coisas, à empiria. Decidiu deixar essas perguntas aos filósofos.
Agora começou a notar o piano do Chick Corea, que havia gravado junto com Henderson. O balanço harmônico daqueles toques colocava-o de novo diante do espelho. Mirando-se agora como um estranho lembrou de uma noite fatídica de inverno e logo pensou em se esquentar com um whisky. Abriu a garrafa e lembrou-se de Vinícius ("Nunca vi amizade nascer em leiteria. O whisky é o melhor amigo do homem. O whisky é cachorro engarrafado"), cujas obras completas da Nova Aguilar estavam sempre em suas mãos quando tinha seus 20 anos. Lembrou-se dos seus primeiros amores e também dos seus primeiros porres de whisky que aconteceram naquela época. Ao primeiro gole, que desceu liso e acariciando sua garganta, sentiu um passado que voltava e novamente via aqueles trigais ao lado dos quais despendia suas energias correndo; sentiu o mar batendo-lhe nas coxas e um pequeno guri que lhe sorria e gritava "tio... tio..."; sentiu o vento sul numa tarde invernal, quando sob um guarda-chuvas, apertado para dois, saía à procura de "ovos moles"; sentiu a voz do velho pai que, enfermo, lhe chamava pedindo ajuda para se mover na cama; sentiu os últimos suspiros incompreensíveis de uma moribunda que lhe pedia socorro; sentiu lágrimas saírem de seus olhos inadvertidamente; sentiu vozes próximas a lhe chamar no meio da noite; sentiu... agora já não tinham mais sentidos os círculos brancos que lhe haviam roubado seu momento de escuridão; agora as perguntas sobre impressões ou sensações pareciam banalidades diante do estupor de sentimentos em que havia se metido; agora era o único momento, era uma trança feita dos tempos pela imaginação; agora era agora...

Nenhum comentário:

Postar um comentário