sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Biombos de Namban


Os impressionantes biombos de Namban abrem um ambiente. Ao contrário da sua destinação originária - algo para separar lugares, circunscrever espaços - aqui vejo uma integração. Os portugueses, chamados "bárbaros do sul" (Namban Jin) pelos japoneses, chegaram a Nagazaki em 1543 e com eles toda uma circulação de mercadorias, gente e culturas. Foi a abertura de um mundo: dois velhos mundos que se cruzam e não mais se separam, mas param a minha cabeça neste instante. Estou pensando em como o projeto português de expansão comercial (e que por fim acabou sendo também colonial) aconteceu com a chegada a Africa, ao Brasil, a Índia. Um dos biombos retrata a partida de um lugar que supostamente seria Goa (pelos elefantes, pela arquitetura e pelos trajes) e o outro quando os Namban Jin chegam ao Japão. Mas fico impressionado pelos detalhes. A folha de ouro que serve como fundo, a delicada pintura sobre o papel, o sutil revestimento em laca, tudo é de uma finura e elegância impecáveis.
A narrativa de saída do "ocidente" e chegada ao "oriente" parece-me muito interessante. Mas um dado do segundo biombo deve ser notado: o final da viagem é ambientado numa casa da Companhia de Jesus onde jesuítas estão a esperar pelos novos europeus que chegam. Reflito um pouco e começo a ver como é curioso que o começo e o fim possam ser repetições incansáveis: o igual que quer encontrar o igual. Os biombos que tenho diante de mim foram concebidos entre os anos de 1593 e 1602 supostamente pelo artista japonês Kano Domi. Ora, apenas cinquenta anos após o primeiro contato com os japoneses e os companheiros de Inácio de Loyola já tinham por lá estabelecido uma "casa de conversão" e de acolhimento dos pares, dos iguais. É no mínimo curioso... Mas volto a pensar sobre os povos que ali se ligavam. Abriu-se o mundo como globo e a arte Namban apenas figurativamente separava os espaços com biombos, estes que eram o retrato do círculo-mundo que a partir de então seria inseparável. A ocidentalização do oriente retorna nas duas japonesas que estão ao meu lado com suas máquinas fotográficas a disparar fotos a todo instante. Fico pensando em como será o retorno das duas ao Japão, em como era o retorno dos portugueses do Japão e vejo como o retorno pode ser dolorido.
Estava encarando uma realidade que estava por acontecer (e aconteceu?) a mim mesmo e sabia que os trópicos haviam levado plumas para a cabeça do diabo na cena infernal que na sala de cima acabara de ver. O painel do Inferno, cujo autor é desconhecido, era a insinuação de um fim, mas de um fim infindável: no inferno o sofrimento é eterno. O retorno era do mesmo? Não havia como não pensar em Nietzsche. E eu pensava: será que volto com um cocar que para mim fizeram os Namban Jin? Estava sendo deglutido pela ânsia de prolongamento do tempo sem retorno, estava querendo as plumas que já não eram minhas e que não poderiam jamais ser. Nenhuma pena pôde ser retirada das minhas asas (e a plurisignificação de pena me nauseia). E as japonesas insistem em tirar fotos, e o rangido do assoalho gera angústia, e o gordo que entra destraído com o mapa do museu nas mãos me irrita, e a volta de imagens de meses atrás me persegue, e tudo se acumula... O retorno do mesmo, do igual. Etimologicamente descendente de Gleich (que faz parte da expressão nitzscheana: Ewige Wiederkunft des Gleichen, "Eterno retorno do mesmo") é o termo Leiche, em português, cadáver. A confusão mental neste momento começa a me armar ciladas e o cadavérico (o mesmo que insiste em querer aparecer) passa a fronteira da imaginação do desconhecido autor do painel Inferno e chega a mim como uma proposta nada infernal: a felicidade está antes da morte. O eterno retorno a si, que nunca é um si mesmo, parece que chegou para mim (em toda contradição que possa ter essa sentença). Entrego-me ao efêmero, ao único e instantâneo mundo possível que está nesse eterno retorno a lugar algum... e esqueço e não penso mais e hoje não é mais dia 36 e lençóis e colchas vão se encontrar...

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