Por que sinto a cabeça pesada, como se uma pedra tivesse acabado de atingi-la? Talvez a lembrança que agora me vem, misturada com a sensação de perda, seja uma chave para tentar compreender isso. Não sei, mas o passado recente insurge contra minha vontade; volteios de imagens fazem rodopiar minhas certezas; vontades que outrora eram tão presentes, e que por tempos se foram, retornam de maneira cáustica, impiedosa; talvez sejam elas as pedras que atacam minha cabeça. Parece que ainda sinto o cheiro nauseabundo do meu corpo atirado naquela cama, solitário, sob o influxo da doença (e que doença maior que a saudade...) que queria devorar-me voluptuosamente, como a tirar de mim qualquer razão (e há?) para a existência. Eram tempos frios, com neve nas duas grandes janelas, as quais deixavam a parca luminosidade dos dias curtos entrarem; era uma dor que não tinha fim... E a valsa de Eurídice soava, e nada confortava a falta daqueles olhos que há pouco brilhavam ali como duas pequenas estrelas na minha constelação.
Largado no canto da cama eu ainda sabia chorar, Eurídice, mesmo que a dor da partida tivesse sim um fim; e com a partida, o adiós. Na língua de Cervantes não nos conhecemos, mas nela nos despedimos. E o primeiro brilho dantesco - era, mais que a língua una de Petrarca, a luz das dissonâncias do florentino que nos iluminava - dos diálogos distantes parecia um sopro de ar nas velas do primeiro jantar na ilha de Capri. Deitados numa cama qualquer eram aqueles tempos outros dos tempos frios, estes que me calavam na dor e que, hoje, num tempo outro, voltavam como as nuvens de algodão que sob o sol tropical traçam formas que me fazem lembrar de Eurídice. Eu olhei para trás e não consegui mais trazê-la comigo; eu, um Orfeu desintegrado, sabia que meu olhar não poderia se voltar, mas na ânsia de vê-la viva fiz com que meu amor fosse picado novamente por uma serpente. E talvez seja esse veneno a fazer com que minha cabeça agora pese como se por uma pedra tivesse sido atingida.
Agora na minha frente estão tantas imagens de mortos. Todos que frequentaram de um modo ou de outro a minha existência; todos que choraram em algum momento alguma despedida; todos que de mim se despediram... Não volto a ver, não volto a chorar, não calo as vozes que gritam dentro de mim, mas não consigo deixar de ter hoje, no tempo em que o tempo parece ter tido um fim, a sensação inusitada de tantas despedidas. Sinto o pulso pulsar, sinto o coração chacoalhar, sinto brisas infames que me derrubam no mar das fantasias eloquentes dessas imagens de arrependimento, sinto muito... adiós.
Imagem: Peter Vischer. Orfeu e Eurídice. 1516. Museum für Kunst und Gewerbe, Hamburg.
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