terça-feira, 1 de março de 2011

Democracia finita e infinita - Partes VIII a X

8.

Isso é do poder, sempre se soube, de fato, já que sempre se pensou - salvo na simples tirania, a qual é sem pensamento - que os governantes governam para o bem dos governados (e disso é possível dizer que em toda parte - salvo, novamente, na tirania - o poder é ordenado ao povo, seja ou não o regime expressamente democrático). Mas o que circunscreve assim a potência do poder não determina, no entanto, a natureza nem as formas e os conteúdos do bem dos governados.

Esse bem é essencialmente não determinado (o que não quer dizer indeterminado) e só pode se determinar no movimento que o inventa ou que o cria abrindo-o novamente a uma interrogação - inquietude ou ímpeto - sobre o que ele poderia ser ou tornar-se. Quais são as formas, quais são os sentidos, quais são as questões de uma existência da qual tudo o que podemos saber de início (e esse início nós o retomamos sempre de novo) se dá em duas proposições:

- ela, essa existência, não responde a nenhum desenho, destino ou projeto que a precederia;

- ela não é mais individual do que coletiva: o existir - ou a verdade do "ser" - só existe segundo a pluralidade dos singulares na qual se dissolve toda postulação de uma unidade do "ser".

O bem sem projeto nem unidade consiste na invenção sempre retomada das formas segundo as quais o sentido pode ter lugar. Sentido quer dizer: envio de uns aos outros, circulação, troca ou partilha de possibilidades de experiência, isto é, de relações com o fora, com a possibilidade de uma abertura ao infinito. O comum é aqui o todo da questão. Sentido, sentidos, sensação, sentimento, sensibilidade e sensualidade, tudo isso só se dá em comum. Mais exatamente, é a condição mesma do comum: o sentir de uns em relação aos outros, e por ele a exterioridade não convertida ou preenchida em interioridade, mas esticada, colocada em tensão entre nós.

Enquanto compromete uma metafísica (ou, como vamos dizer: relações aos fins) e não a saberia garantir por uma religião, civil ou não, a democracia exige que sua política faça emergir clara e largamente o fato de que suas questões do sentido e dos sentidos ultrapassam a esfera de seu governo. Não é um caso de público ou de privado, nem de coletivo ou de individual. É o caso do comum ou do em-comum que não é precisamente nem um nem o outro e no qual toda a consistência se encontra na marginalização de um e do outro. O comum é, de fato, o regime do mundo: da circulação dos sentidos.

A esfera do comum não é uma: ela é feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido - a qual, por sua vez, é ela mesma múltipla, como na diversidade das artes, dos pensamentos, dos desejos, dos afetos etc.. O que "democracia" quer dizer aqui é a admissão - sem assunção - de todas as diversidades em uma "comunidade" que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis.

9.

A armadilha que a política colocou a si própria com o nascimento da democracia moderna - isto é, repetimos, da democracia sem princípio efetivo de religião civil - é a armadilha que faz confundir o comando da estabilidade social (o Estado segundo a origem da palavra: il stato, o estado estável) com a ideia de uma forma que englobe todas as formas expressivas do ser-em-comum (isto quer dizer, do ser ou da existência simplesmente, absolutamente).

Não é que seja ilegítimo ou em vão aspirar a uma forma de todas as formas. Em um sentido, cada um não exige menos do que isso, seja por meio de uma das artes ou por meio do amor, do pensamento ou do saber. Mas cada um sabe - e sabe por um saber inato, originário - que sua aspiração para desenvolver e carregar todas as formas só declara sua verdade quando ela se abre aos seus desenvolvimentos múltiplos e deixa abundar uma diversidade inesgotável. Nossa pulsão por unidade ou síntese entende-se, desde que ela se conheça bem, como pulsão de expansão e de implantação, não de fechamento em um ponto final. Uma certa compreensão da política se sobrecarregou com o peso do ponto final e do sentido único.

Tomem as coisas sob o ângulo da forma ou do desejo, da ressonância ou da linguagem, do cálculo ou do gesto, da cozinha ou do drapeado: não é um regime de forma que acaba por florescer se abrindo sobre todos os outros por contato ou por envio, por contraste ou analogia, em via direta, oblíqua ou rompida - mas ninguém, no entanto, pensa em absorver ou reunir os outros sem se conhecer então como voltado para sua própria negação. Se "o cobre desperta clarim" (Rimbaud) é porque ele não retorna a ser violão.

Também não é de forma das formas, nem de cumprimento de uma totalidade. O todo, ao contrário, exige um mais que todo (seja um vazio ou um silêncio) sem o qual o todo implode. No entanto, a "política" deixou crer que nela podia haver algo disso e que, portanto, por essa mesma razão, "política" devia encarar sua própria distinção afirmando que "tudo é político", ou ainda, que na política se dá a antecedência necessária de toda outra praxis.

A política deve dar a forma do acesso à abertura das outras formas: é a antecedência de uma condição de acesso, não de uma fundação ou de uma determinação de sentido. Isso não subordina a política; isso lhe confere uma particularidade que é a do mais alto serviço. Ela deve renovar sem cessar a possibilidade da eclosão das formas ou dos registros de sentido. Em contrapartida, ela não deve se constituir em forma, não ao menos no mesmo sentido: as outras formas, de fato, ou os outros registros envolvem fins que são fins em si (artes, linguagem, amor, pensamento, saber...). Por outro lado, ela dá seu campo para o colocar-se em forma da força.

A política jamais chega a fins. Ela conduz a níveis de equilíbrios transitórios. A arte, o amor ou o pensamento estão a cada instante, poder-se-ia dizer a cada ocorrência, no direito de se declarar cumpridos. Mas, ao mesmo tempo, esses cumprimentos só valem na sua esfera própria e não podem pretender fazer direito nem política. Poder-se-ia dizer, assim, que esses registros estão na ordem de um "findar [finition] do infinito", enquanto a política depende da indefinição.

10.

Termino, sem concluir, com algumas notas descontínuas.

A delimitação das esferas não políticas (aqui nomeadas "arte", "amor", "pensamento" etc.) não é nem dada, nem imutável; a invenção dessas esferas, sua formação, seu colocar em figuras e em ritmos - por exemplo, a invenção moderna da "arte" - dependem desse regime de invenção dos fins e de sua transformação, reinvenção etc..

A delimitação entre a esfera política e o conjunto das outras não é também dada nem imutável; exemplo: onde deve começar e terminar uma "política cultural"? E é o próprio da democracia ter que refletir sobre os limites de sua esfera "política".

Toda minha proposta poderia parecer conduzir à legitimação do estado atual das coisas nas nossas democracias tal como elas existem: de fato, a política aí observa linhas de partilha com as esferas ditas "artística", "científica", "amorosa" - e ainda não deixando de intervir de cem maneiras diferentes em cada uma delas. Precisamente, nesse estado de coisas jamais é dito nem refletido o que eu me esforço em expor: como a política não é o lugar da assunção dos fins, somente aquele do acesso à sua possibilidade. Inventar o lugar, o órgão, o discurso dessa reflexão, isso seria um gesto político considerável.

"Democracia" é, portanto, o nome de uma mutação da humanidade na sua relação com seus fins, ou com si mesma como "ser dos fins" (Kant). Não é o nome de uma autogestão da humanidade racional, nem o nome de uma verdade definitiva inscrita no céu das Ideias. É o nome, ó quão mal compreendido, de uma humanidade que se encontra exposta à ausência de todo fim dado - de todo céu, de todo futuro, mas não de todo infinito. - Exposta, existente.


Jean-Luc Nancy. La Démocratie finie et infinie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009. pp. 90-94. (trad. Vinícius Nicastro Honesko)

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