Ao som de Pat Martino, Joey Defrancesco e Billy Hart... postagem a dois (Dos subterrâneos e Khôra nos lindes do Desterro):
Senhoras e senhores, não existe para a situação da literatura imagem mais poderosa do que a deste impaciente cantor, Orfeu, ao encontro do dia, atravessando a zona da morte com uma morta quase viva atrás de si. Pode-se afirmar com toda certeza que ele não deixará fatalmente de olhar para trás, e descumprirá a ordem pelo simples fato de que se infiltrar no mundo noturno implica romper com todas as leis do possível. O poeta é aquele que busca o real no impossível mesmo. Por essa razão perde repetidamente o objeto do seu amor por cuja causa empreendeu a viagem ao Hades. Isso é o que nos faz suspeitar também que o poeta e o viajante pelo mundo dos mortos é o tatuado por excelência. Entre seus ombros se inscreve uma experiência da morte que o obriga a cantar eternamente por algo perdido. Com Eurídice nas sombras se realiza uma experiência que segue sendo válida para toda literatura que se exponha. E o será sempre que, em virtude do desejo poético que permanece atrás de si, conduza-a junto a ele até a luz do dia, até o mundo, até a palavra, sempre que ele não se volte apenas para possuí-la, sempre que conquiste aquilo que faz com que os homens, pelo contrário, percam a palavra e sejam seduzidos até submeter-se, ou seja, à morte. Por tudo isso Orfeu se converte na primeira testemunha da poesia, no orador que faz frente à morte e ao silêncio da palavra. Ele fica marcado pelo insuportável nesse lugar totalmente inacessível que com toda probabilidade será visível a todos, com exceção dele mesmo. Não é completamente inexplicável que no seu destino tivesse que se transmitir uma história sobre ele e não um canto. Essa circunstância tem sua importância do ponto de vista poetológico, pois também revela que o testemunho conta mais que a criação. Para nós o que persiste é a tarefa de compreender que a proibição de olhar para trás transmite mais uma vez a impossibilidade de que cada um contemple, entre seus próprios ombros, a si mesmo, ali onde se encontram os signos de fogo das separações irreversíveis. Por isso o poeta não deve fazer imagem nenhuma do objeto do seu desejo, mas o que Orfeu não deve é, ainda pior, o que não poderá e que, no entanto, terá que desejar para encontrar seu consolo. Orfeu tem que perder o que deseja porque simplesmente já o perdeu. Contudo, entre o ter perdido e o novo perder abre-se o espaço para a vida, que corresponde ao ser que respira, fala e deseja. É nesse espaço onde resistimos ao que é demasiadamente real e aprendemos a ser aprendizes do impossível. É esse espaço aquele que abre a poesia expondo-se até o incerto. É por meio dessa exposição que se começa a jogar ao redor do inadmissível. É assim como a imensa claridade da morte pode desembocar na ambiguidade da vida. Do caráter irreconciliável das separações brota a magia de novos laços que acalmam o fatum.
Senhoras e senhores, anunciei no título destas lições uma poética do vir-ao-mundo que ao mesmo tempo deve mostrar como chegamos à linguagem. Temos a impressão de que até o momento pouco se esclareceu a esse respeito. Em relação a mim, ficaria satisfeito se essas sugestões fossem suficientemente atrativas para permitir abordar esse assunto numa próxima ocasião com mais seriedade. Senhoras e senhores, ficaria feliz de lhes apresentar dentro de uma semana algumas reflexões sobre a poética do começar.
Peter Sloterdijk. Venir al mundo, venir al Lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Valencia: Pre-Textos, pp. 29-31. Trad. para espanhol: Germán Cano (retradução caseira para o português: Pancho Lechuza com pitacospoéticos de Le Malade)
Imagem: Jan Brueghel "The Elder". Orpheus in the Underworld. 1594. Galleria Palatina, Firenze.
As variáveis da conversa eram muitas, Pancho... no meio da coversa tinha um cachimbo... ceci n'est pas une pipe era coisa do Magritte... o impossível nos foi pedido e com o impossível respondemos... a verdade correu cedo pro beco escuro... Eurídice dorme... as musas querem meu sangue... entrego a falta à falta... viva!
ResponderExcluirOrfeu com um cachimbo melvilleano de marinheiro, lutando contra e com o desvario. A obstinação de alguém que já se sabe perdido - mas faz desta perda irrevogável o motivo mais nobre de sua luta. A la Nietzsche: no tempo, contra o tempo, a favor de um tempo por-vir. Salut!
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