De costas para o mar sentia o pulso, as mãos, as pernas, os braços, os engates do corpo como conexões nefastas a impedir o gozo do vento. Agora, horas depois, deitado, fumando, o maldito inocente se sentia culpado pelas circunstâncias de sua vida. Era assim: um afrouxar das rédeas da existência (a maldita ilusão de controle) e as tolices (?) apareciam como impressões de verdade. Não podia deixar que o vento lhe trouxesse falas de outrora? Não podia simplesmente encarar o devaneio como pura sensação de tentar encontrar outras conexões, outros engates no corpo? Mas isso lhe parecia demais e a culpa era como o suor de seu corpo: contínuo e impassível. Ventava muito e as palavras que se podia ouvir através da brisa marítima não eram de ordem, mas caóticas, disturbadas, atropeladas pela própria velocidade da enunciação. Aí, o maldito inocente pensou em Foucault, pensou no arquivo, pensou no lugar vazio da enunciação... pensou na sujeição-subjetivação, pensou na entrega de si ao mundo do controle, na merda da "experiência" de vida contemporânea, nas parcas noites de lua cheia em que ainda podia sentir a vivacidade de um sorriso alheio; pensou na ingratidão, pensou na morte, pensou a morte... será que era possível, pensar a morte? Não, claro que não... É impossível escrever, é impossível! A morte é impossível! Mas a morte ronda e a ronda é implacável... o sentido é insensível e as paragens mais estranhas parecem campos de lavanda em plástico; os chineses cantam canções em coro; plie et replie; quantas vezes terá ele de cantar canções fictícias para agrada-la (a quem?) no leito de morte? Virou-se e viu novamente o mar. Agora já não estava de costas, agora já não titubeava e não mais suava. Via o vento e os sons: sinestesia... Tentava largar a culpa, tentava vilipendiar os próprios engates do corpo com o gesto mais profano: rasgava a carne com a navalha da palavra, com o devaneio mais absurdo no mundo augusto e banal que sentia rodear-lhe. Agora bastava-lhe encarar aquele pensamento sobre a morte (ou o pensar a morte?). Será? Desdobra e dobra... Abrem-se caminhos intensos, fugidios e quebradiços, nos quais o trajeto só poderia ser um perder-se e um encontrar-se com as lavandas plásticas, com os chineses cantando, com a morte... de novo, de novo... era uma esfinge, era um enigma? Era ele Édipo? E pensava, tal como a personagem de Sófocles (ou a versão pasoliniana?): "Ah, como é terrível o saber quando o saber não serve para nada a quem sabe...". E ele só sabia que o abismo em que queria ser jogado estava dentro dele, mas ele já sabia ter dito tudo ao vento, mesmo não o querendo. De nada servia aquele saber, de nada lhe adiantava a pretensão do entender; não podia dar as costas ao mar, assim como não mais podia concatenar ideias tamanho entorpecimento. A compreensão é interdição! Vagar era-lhe o sentido. Mas sentiu, com as palavras, que tudo não passava de motivos torpes, sim, motivos torpes... a vida era-lhe uma sucessão de motivos torpes. Aconteceu...
imagem: Ian Berry. Northern Ireland. Antrim. Evening stroll along the Antrim coastline with wind whipping up the sand. 2004.
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