quarta-feira, 15 de junho de 2011

O campo do possível


"Oh, cara alma, não aspire a vida imortal,/ mas saiba explorar o campo do possível!" Logo na primeira frase lida naquele dia, arrebentava na minha face, como as ondas de uma ressaca numa costa pedregosa, algo como um escarro: saiba explorar o campo do possível. O que, caro Píndaro, poderia eu fazer senão ficar aflito diante do seu conselho!? Porém, detive-me naquilo que me parecia um descuido do poeta: como saber explorar!? Não se sabe explorar, simplesmente explora-se. Aliás, ao definirmos o campo do possível já estaríamos delimitando seus limites e o possível passaria a ser restrito às possibilidades, estas que, por sua vez, seriam regidas por uma lógica exclusivo-disjuntiva (A ou B), de modo que o possível seria apenas matéria de escolha, de uma decisão mediante o melhor juízo (e isso é muito kantiano para mim).
Explorar um campo tinha que ter a ver com o mergulho num desconhecido, era nisso que eu pensava. Lembro mais uma vez das cartas marítimas com a máxima latina non plus ultra (que também estava em Píndaro): não ultrapasse, pois a partir daí está o desconhecido ou o fim. Claro que ultrapassaram e aqui estamos! Como fazer do desconhecido um campo do possível? Tal era a minha questão. Confesso (com pesar) que me senti tautológico, que isso tudo me parecia uma grande bobagem, um imiscuir-se em filigranas sobre como agir na vida, uma pura especulação, já que a questão era agir. No entanto, era tarde para cair nesse conto. Seria como tentar fazer com que o cadáver entrasse em cena para pedir ao messias para que dele se lembre no reino dos céus - como quando o personagem do diretor (protagonizado por um grande diretor: Orson Welles, e aqui a paródia é sensacional), no filme La Ricotta de Pasolini, olhando para o bom ladrão na cruz ordena "ação!", "ação! vamos, Stracci, quando estiver no Reino dos céus..." e nada acontece, pois o ator tinha morrido pouco antes, já dependurado.
"Há esperança? Não para nós...". E agora era essa lembrança da conversa de Kafka com Janouch que me parecia a maneira mais apropriada para não recair (decair? Seria esta palavra carregada da teologia cristã mais apropriada?) no conto da não tautologia (essa constante na vida pragmática e lógica do mundo da produção em série - produção essa de artefatos e gente). Não conseguia não pensar a respeito de como agir e justamente essa era a medida máxima do meu agir. Não havia, portanto, esperança... Estava apenas tentando analisar - caminho sem volta - as ferrugens da máquina do mundo, tentando ver, além das possibilidades, o possível. As possibilidades são como o campo no qual não me resta mais que necessariamente fazer algo, isto é, a escolha, a partir de um cálculo de juízo, por uma maneira de agir; o possível o campo no qual posso simplesmente, ou seja, onde posso também não fazer.
Hoje, parece que não nos resta o desconhecido como campo do possível. Tudo no mundo das visibilidades e do espetáculo integrado é já dado; e diante desse tudo é-nos facultada uma escolha (caso vivamos em um regime dito democrático) ou é-nos selecionada a melhor opção pelos mais dignos de escolha (caso estejamos num dito regime ditatorial). Parece-me que quando o campo do possível vira campo das possibilidades - e nada mais corrente hoje do que a ideia de que o homem contemporâneo pode tudo, e nesse sentido as imagens publicitárias são como os ícones dessa nova religião - tolhe-se a noção de que existe um desconhecido em meio ao qual estamos imersos (essa dimensão do que não podemos e a respeito da qual nos é interdito o saber) e que é somente por uma relação direta com ele, isto é, explorando-o, que poderemos ter acesso a uma vida que também pode não fazer, que pode não escolher, que pode explorar o campo sem saber de antemão quais os caminhos da exploração.
Quanto à vida imortal... bem, minha cara alma, não a aspiro, mesmo sabendo que também hei de penar não na vida ou morte eternas, mas na vida que explora, sem previamente o saber, um campo do possível.

Imagem: Jacopo Pontormo, Deposizione, 1528. Chiesa di Santa Felicita, Firenze. (Escolho essa imagem em homenagem a Pier Paolo Pasolini)

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