terça-feira, 12 de julho de 2011

Jogando com letras


Hoje, logo depois de um brincadeira boba com a letra "s", acabei por começar uma divagação gozosa - e pena que não se goza com "s" (ainda que sibilinos sons possam ser a matéria de um gozo). De todo modo, eis um texto de gozo, de delírio. Tanto porque não se refere a nada útil, mas a algo Sutil como uma letra, um gramma, para dizer com Derrida. Engraçado como uma letra desloca o emblema máximo dos tempos de capitalismo financeiro doentil no seu "oposto". Os adjetivos útil e sutil, de fato, não são opostos; porém, o primeiro refere-se à necessidade, ao uso determinado e preciso, ao mundo da produção, já o segundo diz respeito a coisas delicadas, pequenas e refinadas (e, para gozar ainda mais no texto, outra brincadeira: útil é paroxítona - claro, as palavras também podem ser estóicas: primeiro a força para depois ter o descanso numa ética do labor, mesmo que se possa pensar no sexo, se bem que de modo ainda muito cristianizado; sutil é oxítona - o climax vem aos poucos, é tântrico, é de gozo contínuo com uma explosão final).
Os substantivos utilidade e sutileza conseguem expor, mais que seus adjetivos, figuras desse mundo opositivo. Normalmente dizem que a lógica do mercado é a utilidade, que é imperiosa, que não dá tréguas, que nela sobrevivem só os melhores; dizem que a sutileza é, por sua vez, para momentos precisos (normalmente associados ao "lazer" do homem médio - num discurso ainda dentro da lógica capitalista), não dado às coisas úteis. Em outra linguagem poderíamos dizer que a utilidade é masculina, enquanto a sutileza é feminina (e isso se agrava ainda mais em estudos biológicos que apontam a caça - coisa verdadeiramente útil - ao macho, enquanto à fêmea restariam os trabalhos menos úteis e mais sutis - a preparação dos alimentos, o cuidado com a cria etc.). Obviamente que a distinção pautada no critério da necessidade não é taxativa (aliás, comecei dizendo que não se tratam de verdadeiros opostos... tudo não passa de um gozo, com "s", meu).
Com o "s", que me provocou esta manhã, diz-se sexo - e no sexo o "s" aparece uma só vez, mas é dito duas. Nada mais gratuito que o sexo (a não ser que, escolástica e cretinamente, alguém queira me dizer que sexo é para a reprodução - o que seria reafirmar a lógica da utilidade num espaço em que o que de melhor há é a sutileza). Foucault foi muito perspicaz ao dizer que diante do minúsculo segredo do sexo todos os enigmas do mundo parecem menores. Mas eu não estava muito preocupado com os enigmas do mundo ainda hoje quando brinquei com um "s" (ainda por cima, foi tolhendo o "s" que a minha tola brincadeira se deu - meio ao modo de Max Ernst no La Femme 100 têtes, no qual o numero 100 funciona como uma "caixa de letras" - e sons - para uma brincadeira com a sentença: sans tête, cent tête, s'entête, sang tête...).
Pensar (e, porque não, gozar com) as letras é algo que já a cabala judaica fez. Toda a experiência mística dos judeus medievais se dava por meio da reflexão sobre o tetragrama sagrado. O nome com o qual deus nomeia a si mesmo é a tal ponto uma experiência da letra, que não pode ser proferido (nomen innominabile). Para o místico, o som e a letra coincidem e daí a força criadora do Nome. A auto-nomeação divina seria como anterior ao primeiro ato da criação e esta, a criação, seria tão somente emanação das letras que compõem o nome divino (daí o caráter impronunciável do nome do deus judeu). Em hebraico a palavra ot quer dizer não somente "letra", mas também "signo". Daí as teorias cabalísticas pensarem as letras como assinaturas secretas (signos secretos) do divino em todos os graus do processo da criação. Isaac "o cego" - sobre quem Scholem diz ser talvez o primeiro cabalista provençal historicamente individualizado - dizia que toda letra, como configuração de forças criadoras divinas, representa as formas supremas (divinas) e, ao assumir um aspecto visível no plano terreno, passa a possuir um corpo e uma alma. Esta, a alma, seria a articulação do espírito divino que vive na letra (proveniente do sopro da criação), de modo que todo o criado está fundamentado na linguagem divina, à qual, porém, nós homens não temos acesso. É-nos deixada como herança a "maldição" de saber reconhecer as letras do nome divino (o tetragrama), porém, a impossibilidade de pronunciá-lo. De certo modo, falamos aqui de uma gramática do inominável, do que não pode ser proferido; isto é, no fundamento (a letra) de toda palavra e de todo proferir (a fonética, a voz), existe uma negação fundamental. E isso não só na cabala judaica. Também na mística cristã, cuja experiência do êxtase é justamente um calar-se, um não proferir palavra, diante do Absoluto para nele se integrar no silêncio que tudo sabe (e eis o paradoxo místico cristão, tão bonito em João da Cruz, por exemplo). Antes até, nos gregos, há o problema do gramma como signo e ao mesmo tempo elemento da voz (da fonética), num espécie paradoxal de signo de si mesmo.
Ah, mas eu só queria falar do "s" com o qual brincava há pouco. Não quero entrar em problemas enigmáticos fundamentais (e talvez por isso, além de brincar com o "s", tenha brincado um pouco com deus). Desejo apenas brincar com as letras, num jogo sempre aberto, porém com percursos que são obrigatórios - as regras de formação das palavras dentro numa língua (uma vez que somos homens e não deus). Porém, brincar com as palavras hoje, uma vez que já aprendi o jogo, não tem o mesmo significado do que para uma criança. Aprendi a formar palavras e isso só se faz uma vez: aprender. Aliás, Benjamin fala disso com incrível Sutileza num texto chamado Jogo das Letras, em Infância em Berlim. Ele fala de uma saudade de algo que acontece apenas uma vez, isto é, o ato de aprender. Porém, talvez pensar num modo de conseguir manter esse estado potencial em que aprender seja sempre possível é um ponto a não se perder de vista (e essa era a prova de vida do próprio Benjamin). Mas, para hoje, estaria extravasando em muito meu gozo com as letras.

Imagem: Giovannino de' Grassi. Letras góticas de um livro de modelos. 1390. Biblioteca Civica di Bergamo.

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