Exasperado, colado ao fundo azul do tempo, sinto apenas o grito monocórdico de uma minha voz distante. Eram os eventos de um tempo em que minha Ítaca jazia defronte aos meus olhos. Impossível era entretanto voltar, impossível. Mas o tempo é que volta enquanto eu fico escutando, na mais solitária solidão, a voz de alguém que se esgueirou no meu parcamente iluminado quarto para me dizer: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência... A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira! Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino! Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"
E nada mais. E nada mais! Porém, a voz que afunda minha presença na vontade de entrar pelo avesso do tempo sabe também que eu, poeirinha da poeira, desavisadamente tinha caído em tentação antes mesmo de sua sorrateira entrada. E a voz, por saber disso, desfez-se também em pó à procura da brecha na sua ampulheta rachada; eu não, já tinha espatifado meu contador contra a parede daquele quarto quando ainda havia sol, apenas para ver a dança da poeira com a sombra. Colado ao fundo azul do tempo sinto o grito monocórdico e a Ítaca dos meus sonhos sumirem em meio à poeira da ampulheta. E, mesmo colado, digo: Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e nada mais, e nada mais. Ainda assim, talvez tudo isso não tenha sido mais do que minha passagem noturna pelo muro divisor da vida e da morte, e, mais do que o estranho demônio que no meu quarto entrara, possa ser o velho René Char a me dizer que viver torna-se a conquista dos poderes extraordinários pelos quais nos sentimos profusamente atravessados mas que somente exprimimos incompletamente com falta de lealdade, de discernimento cruel e de perseverança. Um sonho...
"À l'âge d'homme j'ai vu s'élever et grandir,
sur le mur mitoyen de la vie et de la mort
une échelle de plus en plus nue, investie d'un
pouvoir d'évulsion unique: le rêve... Voici que
l'obscurité s'écarte et que VIVRE devient, sous
la forme d'un âpre ascétisme allégorique, la
conquête des pouvoirs extraordinaires dont nous
nous sentons profusément traversés mais que
nous n'exprimons qu'incomplètement faute de
loyauté, de discernement cruel et de
persévérance."
Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.
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