quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Janelas de adeus



"Nasci nu./ Quando eu vim me sussurraram: 'Adeus, desde já adeus'." Curiosa prestação de contas inicial de Murilo Mendes constante em um poema chamado "Memória". Borges conta que depois de uma trivial despedida em uma esquina qualquer vem a saber, um ano depois, que aquela mulher a quem tinha dado adeus havia morrido. Percebe que por trás do trivial estava uma infinita separação. Nota, porém, que aquele último adeus também poderia ser um modo de saber-se imortal: "Los hombres inventaron el adiós porque se saben de algún modo inmortales, aunque se juzguen contingentes y efímeros." Mas a imortalidade desejada não é a do reencontro além da vida, mas somente a do perder-se nos sussurros da memória. O adeus, portanto, é o começo da vida. Mas os sons sibilinos que a memória nos envia chegam, muitas vezes, desavisadamente. E o adeus, a grande invenção do homem (feita, de certo modo, para deus), abre-nos então uma janela a partir da qual contemplaremos não a beleza do céu pensado pelos homens no jogo advinhatório da astrologia (assim como a nudez, todo logos está condenado), mas a grande vereda de ingresso no caos, no abismo, aquele mesmo que Baudelaire, certa vez, pensando no Pascal estupefato de alegria (joie, joie, joie!), cantou:

Pascal em si tinha um abismo se movendo.
- Ai, tudo é abismo! - sonho, ação, desejo intenso,
Palavra! E sobre mim, num calafrio, eu penso
Sentir do Medo o vento às vezes se estendendo.

Em volta, no alto, embaixo, a profundeza, o denso
Silêncio, a tumba, o espaço cativante e horrendo...
Em minhas noites, Deus, o sábio dedo erguendo,
Desenha um pesadelo multiforme e imenso.

Tenho medo do sono, o túnel que me esconde,
Cheio de vago horror, levando não sei aonde;
Do infinito, à janela, eu gozo os cruéis prazeres

E meu espírito, ébrio afeito ao desvario,
Ao nada inveja a insensibilidade e o frio.
- Ah, não sair jamais dos Números e Seres!

Imagem: Francis Picabia. Janela do Caos. 1949. (Uma das 6 litografias feitas pelo artista para ilustrar o livro homônimo de Murilo Mendes publicado em Paris no mesmo ano.)

4 comentários:

  1. Que bacana, Vinicius.
    Picabia fez as ilustrações especialmente para o livro do Murilo? Como eles se conheceram?

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  2. Opa, Kelvin! Pois então, cara, o lance é mais ou menos o seguinte. Roberto Assumpção, um diplomata brasileiro em Paris, era muito amigo do Murilo e, decidido a divulgar a cultura brasileira na Europa, promove a edição de "Janela do Caos" (uma coletânea de 6 poemas de Murilo, organizada pelo próprio poeta) em Paris. Em fevereiro de 1949 Picabia teve sua casa assaltada e boa parte de suas economias foi furtada. Assim, Michel Tapié (um crítico e curador de arte que poucos dias depois do furto organiza na "Galerie René Drouin", onde trabalhava, uma exposição retrospectiva em homenagem - e auxílio - a Picabia: "Cinquante Ans de plaisir") faz o meio-campo entre Picabia e Assumpção. Murilo seleciona os textos a serem publicados na edição, encaminha-os a Assumpção que os repassa a Picabia para que este possa fazer as litografias. Depois de pronta, a edição (que, dizem, é linda) é apresentada na mesma Galerie Drouin. Claro que depois o Murilo escreve ao Picabia agradecendo e tal. Não creio terem eles se conhecido. Murilo, que vai pela primeira vez a Paris no começo de 1953, ano da morte de Picabia, enumera uma galera que conheceu, mas, dentre eles, não cita o Picabia. Enfim, a história é mais ou menos essa.
    Abraço!

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  3. Gostei muito do Blog e dos textos selecionados. Sobre o Adeus, há esse texto do Adorno: a parte IV, "Les Adieux".

    http://home.comcast.net/~platypus1848/adorno_messages.pdf

    Abraços!

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  4. Obrigado pelo Adorno, Doubter!
    Abraço!

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