segunda-feira, 21 de maio de 2012

Sala de desjejum



Uma tradição popular adverte contra contar sonhos, pela manhã, em jejum. O homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo do sortilégio do sonho. Ou seja: a ablução chama para dentro da luz apenas a superfície do corpo e suas funções visíveis, enquanto, nas camadas mais profundas, mesmo durante o asseio matinal, a cinzenta penumbra onírica persiste e até se firma na solidão da primeira hora desperta. Quem receia o contato com o dia, seja por medo aos homens, seja por amor ao recolhimento interior, não quer comer e desdenha o desjejum. Desse modo, evita a quebra entre mundo noturno e mundo diurno. Uma preocupação que só se legitima pela queima do sonho em concentrado trabalho matinal, quando não na prece, mas de outro modo conduz a uma mistura de ritmos vitais. Nessa disposição, o relato sobre sonhos é fatal, porque o homem, ainda conjurado pela metade ao mundo onírico, o trai em suas palavras e tem de contar com sua vingança. Dito modernamente: trai a si mesmo. Está emancipado da proteção da ingenuidade sonhadora e, ao tocar suas visões oníricas sem sobranceria, se entrega. Pois somente da outra margem, do dia claro, pode o sonho ser interpelado por uma recordação sobranceira. Esse além do sonho só é alcançável num asseio que é análogo à ablução contudo diferente dela. Passa pelo estômago. Quem está em jejum passa do sonho como se estivesse de dentro do sono.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única (Obras Escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 1995.  pp. 11-12. Imagem: "Double Portrait," Lucian Freud, 1986.  

6 comentários: