Um grande rato morto era devorado por três grandes urubus famintos. A cena, grotesca e que ao mesmo tempo revelava a beleza da conservação da vida animal, decorria num dos lugares propícios a cartão postal da cidade. Curioso, porém, é como as pessoas que por ali passavam olhavam para aquilo com ar de repugnância, entretanto, sem conseguirem desviar o olhar daquelas aves de rapina. Era como se a imagem das vísceras do roedor, nos bicos dos pássaros, fizesse com que os que presenciavam o quase ritualístico ato se colocassem a pensar. Ora, lembrei imediatamente da sentença hobbesiana: "homo homini lupus". Nada mais equivocado, caro Hobbes. À elegância do caçador solitário não pode ser elevada a condição rapinosa deste vivente que possui a linguagem. Por trás das máscaras da personalidade - e das fantasias cientificistas do "animal racional" -, esconde-se o homem. Para a violência do abutre, que somente cumpre sua natureza no estripar a carniça, volta-se o olhar dos passantes não por um mero interesse pela peculiaridade da cena, em meio ao movimento dos automóveis na avenida, mas por reconhecer no gesto do grande pássaro negro, tal como num espelho, a sua mais íntima e velada condição.Vilipendiar o já morto, violentar a própria condição, tal parece ser o restante de possível a este bicho que fala a própria vida. "Homo homini vultur", caro Thomas, "homo homini vultur"...
Imagem: Hieronymus Bosch. A tentação de Santo Antão (detalhe). 1505-06. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
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