terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O nojo




O consolo metafísico - em que nos deixa, como já indico aqui, toda verdadeira  tragédia - de que a vida no fundo  das  coisas, a despeito de toda  mudança  dos  fenômenos,  é indestrutivelmente poderosa e  alegre, esse  consolo  aparece com  nitidez corporal como coro de sátiros, como coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente como que por trás de toda a civilização e que, a despeito da mudança das gerações e da história  dos  povos,  permanecem  eternamente os  mesmos.

Com esse coro consola-se o heleno profundo, e apto unicamente ao mais brando e ao mais pesado sofrimento, que penetrou com olhar afiado até  o  fundo da terrível tendência  ao  aniquilamento  que  move  a  assim chamada história universal, assim como  viu o horror da  natureza, e está em  perigo  de  aspirar  por uma  negação  budista  da  existência. Salva-o a arte, e pela arte salva-o para  si... a vida

O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da  existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no  passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro. Mas tão logo aquela efetividade cotidiana retoma à consciência, ela é sentida, como tal, com nojo; uma disposição ascética, de negação da vontade, é o fruto desses  estados. Nesse  sentido  o  homem  dionisíaco  tem  semelhança com Hamlet: ambos lançaram uma  vez  um olhar verdadeiro na essência das coisas, conheceram, e repugna-lhes agir; pois sua ação não pode  alterar nada na  essência  eterna das  coisas, eles sentem  como  ridículo  ou  humilhante esperarem deles que recomponham o mundo que saiu dos gonzos.

O conhecimento mata o agir, o  agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão - esse é o ensinamento de Hamlet, não aquela sabedoria barata de Hans, o Sonhador, que por refletir demais, como que por um  excesso  de possibilidades,  não  chega  a  agir; não é a  reflexão,  não!  - é  o  verdadeiro conhecimento,  a visão da horrível verdade, que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionisíaco. Agora não prevalece nenhum consolo mais, a  aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada. Na consciência da verdade contemplada uma vez, o homem vê agora, por toda parte, apenas o susto ou  absurdo do ser, entende agora o que há de simbólico no destino de Ofélia, conhece agora a sabedoria  do deus  silvestre Silenos: sente nojo.

Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como urna feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com  as  quais  se  pode  viver: o sublime como domesticação artística do  susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. O coro de sátiros do ditirambo é o ato  de  salvação da arte grega; no mundo intermediário desses  acompanhantes de Dioniso esgotavam-se as crises  descritas acima.

Friedrich Nietzsche. O nascimento da tragédia no espírito da música. Parágrafo VII. (Trad. Rubens R. Torres Filho). São Paulo, Nova Cultural, 1999. pp. 30-31. Imagem. Francisco Goya y Lucientes. Los Caprichos.´Placa 77. Unos a otros.      



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