quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Povos expostos, povos figurantes: entrevista com Georges Didi-Huberman



Entrevista de Georges Didi-Huberman concedida a François Noudelmann

F.N.: O povo entrou tardiamente no espaço artístico. Os miseráveis, os sem nome, parecem hoje mais visíveis. Porém, de que maneira? É a questão que coloca Georges Didi-Huberman em Peuples exposés, peuples figurants, publicado pelas Edições de Minuit.
Bom dia, Georges Didi-Huberman. Estamos muito felizes por recebê-lo no Jornal da Filosofia para falar sobre o quarto tomo de O Olho da História, no qual o senhor continua seu trabalho sobre a relação imagem e história. E o senhor diz: “É o paradoxo que hoje o povo é aparentemente muito exposto mas, de fato, é sub-exposto ou sobre-exposto”. O que o senhor quis dizer?

D.H.: Até mesmo pior. Ele é exposto a desaparecer, em muitos casos. Exposto é uma palavra interessante, já que quer ao mesmo tempo dizer estar em perigo de desaparição, por exemplo, e também quer dizer estar submetido a uma representação. Portanto, entendo o exposto nesses dois sentidos. Vocês sabem muito bem que é possível ver todos os dias o povo na televisão, nos documentários, enquanto se faz turismo, no mundo inteiro etc.. Isso é o que eu chamei de sobre-exposição. Mas também há a sub-exposição. Há muitas coisas que não vemos, que nos são censuradas. Assim, a questão é saber onde se encontra, por assim dizer, a luz justa na representação. Ora, é interessante que na sua apresentação o senhor disse o povo e depois fez referência aos miseráveis. Eu gostaria de especificar que jamais digo o povo, digo sempre os povos, como os miseráveis.

F.N.: O senhor diz o pequeno povo.

D.H.: Eu digo os pequenos povos.

F.N.: O que o senhor entende por os pequenos povos, em relação à massa ou ao Povo com “P” maiúsculo?

D.H.: Poderia dizer muito rapidamente que o Povo, com “P” maiúsculo, é uma hipóstase. Deduz-se uma unidade de algo que é extremamente múltiplo. O senhor sabe bem que o Povo não existe, assim também um povo. Como, talvez o senhor sabe, há este filme magnífico chamado Force contact, que mostra o primeiro contato dos ocidentais com os autóctones, com os papuásios, filmado nos anos 30. Mas esse povo, absolutamente autóctone, que jamais havia tido contato com quem quer que seja, já não era um Povo, eram já povos. Eram os homens e os deuses, os homens e os animais, os homens e as mulheres etc..

F.N.: No século XIX o Povo era uma entidade retórica, que encontramos em Jules Michelet, e mesmo em Victor Hugo, com o qual o senhor também trabalhou.

D.H.: Sim, sim, justamente. É interessante o senhor ter falado dos miseráveis. Mas a mim interessa mais a questão do plural. Com isso, eu dialogo muito com um pensamento como o de Jean-Luc Nancy, notadamente seu magnífico livro Ser Singular-Plural. Isto é, como falar de algo admitida e fazendo aparecer sua multiplicidade.

F.N.: Bem, a referência a Jean-Luc Nancy nos remete também à questão da comunidade. O senhor poderia falar concretamente quais são para o senhor os ângulos que permitiriam aproximar tal comunidade, tal povo, tais indivíduos? Estamos dentro dos efeitos da individuação, ou desde sempre esquecemos que estamos num quadro que engloba as pessoas dentro do termo genérico comunidade?

D.H.: Eu não coloquei propriamente o problema da comunidade, parece-me, nesse livro. Mas talvez o senhor que o leu poderia me dizer... [risos]

F.N.: [risos] É porque eu falo do terceiro capítulo, Georges Didi-Huberman, A partilha de comunidade.

D.H.: Justamente. Insistindo na palavra partilha, pois, por exemplo, a questão se coloca, uma vez que eu parti da representação. Ao assistir a um filme, a questão que se coloca é a da partilha entre o ator que está em primeiro plano, o protagonista, o herói etc. e os que chamo de figurantes. Eu fui até o fim, fiz uma coisa extremamente simples. Benjamin diz que a tarefa do historiador é ocupar-se daqueles que estão atrás, dos que são sem nome, daqueles que eventualmente não têm a palavra, além disso, dos que eventualmente não têm refúgio, os sem abrigo, os exilados etc.. Portanto, se tomarmos isso no plano da estética, o senhor assiste a um filme no qual o senhor se interessará pelo estatuto dos figurantes. Por exemplo, foi o que fiz ao assistir de muito perto como Pasolini trabalhava.

F.N.: Bem, eu retomo minha questão. Estamos aqui abordando a questão por um viés de definição, mas, concretamente, de quem o senhor fala?

D.H.: Concretamente, nesse livro, eu falo dos figurantes tal como eles são filmados nos filmes de Pasolini. Isto é, falo de exemplos muito precisos. Eu tomo os doze apóstolos do Evangelho segundo Matheus, eu tento ver como Pasolini trabalhou, muito concretamente, e como era fundamental para ele delongar-se com ternura, por assim dizer, com atenção, sobre os rostos desses que não têm nem nome nem palavra a pronunciar. O que não é o caso, por exemplo, dos filmes de Spielberg, nos quais os figurantes não servem a nada e são apenas decoração. Mas isso é uma metáfora política, aliás, é mais que uma metáfora. Citei Nancy, mas poderia também citar Rancière, obviamente, no que diz respeito à questão da partilha. Assim, a questão do figurante se torna uma questão indissoluvelmente política e estética.

F.N.: O senhor citou Rancière, que coloca essa mudança de regime estético e das artes no século XIX. Mas, para o senhor, como historiador da arte, há um momento dado no qual o povo entra não propriamente dentro da representação, mas, em todo caso, é apresentado de maneira diferente com as relações e veios diferentes?

D.H.: Ah, mas eu queria fazer uma homenagem a Rancière e o senhor aponta justamente para o ponto em que não estou de acordo com ele... Não, as coisas acontecem muito antes. Penso que há uma coisa muito estranha na história da filosofia ou na filosofia tal como ensinada, por exemplo, na França. Estudamos Platão, Aristóteles e, num salto, já estamos em Descartes. Para um historiador da arte, um momento fundamental é o humanismo dos séculos XIV e XV. Portanto, penso que as coisas, essas histórias de regimes sobre as quais Rancière fala, que é o que me interessa menos nele e que, entretanto, interessa-me consideravelmente, mas, interessa-me menos porque não se trata de época, é evidente. Por exemplo, cito longamente no livro a maneira como Leon Battista Alberti faz um elogio extraordinário do mendigo, o que tem uma relação evidente com certa filosofia antiga, com o cinismo, por exemplo. Mas, pouco importa. As coisas mudam constantemente. Eu não sou alguém que faz história colocando barreiras entre períodos.

F.N.: O senhor também cita Villon. Por fim, a questão da representação justa, uma vez que o senhor partiu dessa ideia do justo, não é a do enquadramento. Não é a maneira de distribuir as relações no interior de uma imagem?

D.H.: De fato, tudo depende, no mínimo, de duas coisas. E isso tem a ver tanto quando o senhor observa uma série de Rembrandt, uma série de Goya, ou uma série de fotografias, ou um filme de Eisenstein ou de Pasolini. Tudo depende primeiramente do enquadramento. No caso do cinema, também depende da duração dos plano. O que é muito lindo em Pasolini é como ele permanece muito tempo num plano de figurantes. Tudo depende do enquadramento e da montagem. É um livro sobre montagem.

F.N.: Muito obrigado, Georges Didi-Huberman. Veremos toda a riqueza de suas análises, muito precisas, em “Povos expostos, povos figurantes”, o quarto volume de O Olho da História, publicado pelas Edições Minuit.   

Entrevista para o Journal de la Philosophie, da rádio France Culture, que foi ao ar no dia 19/11/2012. Link para o áudio: http://www.franceculture.fr/emission-le-journal-de-la-philosophie-peuples-exposes-peuples-figurants-2012-11-19 - Transliteração e tradução: Vinícius Nicastro Honesko.         

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