quinta-feira, 7 de março de 2013

Amor em tempos de cólera - sobre Amour (II)



ao Khôra, pois é preciso politizar até a ontologia. 


P. O mundo tem remédio?
R. O mundo está vivo, e nada vivo tem remédio, e essa é nossa sorte.

(Da última entrevista de Roberto Bolaño) 


Mesmo a ontologia é atravessada pela história. Até a natureza: a inexorabilidade do tempo e dos eventos atravessa a physis, remodela-a, adultera-a, não há pureza nas fusões múltiplas do vivo. Não há remédio contra o tempo.

Nenhuma ética, como espaço dos nomoi, pode fundar-se em categorias ontológicas. Não há natureza humana, nem habitações definitivas. Nada escapa à história.

Assisti Amour, de Haneke, alguns meses antes da escrita deste texto. Escrevê-lo tardiamente demonstra minha hesitação. O filme é desconcertante.

A morte é, como diria Ariés, o grande tabu do tempo presente. O moribundo, ao contrário de ser a autoridade que carrega uma verdade, ouvida como parábola ao pé de um leito de morte, é hoje lançado em casas de repouso, em clínicas vigiadas, em UTI's. A visão de uma figura fugidia, que não estará mais, é perturbadora para olhos que sobrepujam suas próprias rugas. Nunca as cirurgias e tratamentos estéticos contra os efeitos do tempo sobre a pele foram tão disseminadas, a cultura contemporânea consegue mesclar, de forma catastrófica, o mito da jovialidade supostamente infinita e o conservadorismo político mais necrosado. 

Os enterros deixaram de ser cerimônias públicas para tornarem-se ritos assépticos e impessoais que nos incomodam, as cinzas (do cremado, outra prática recorrente) precisam ser jogadas para debaixo do tapete - ou da grama.

A morte saiu de uma proximidade que acompanhava nossas respirações, onde estava ao lado de nossos esquecimentos e sonos - terna - para tornar-se a sombra desconhecida dos filmes de terror mais sanguinários.

A claustrofobia domina o filme. Não apenas pelos limites da casa. Mas pelos rituais. A gentileza extrema com que Anne e Georges se tratam, mesmo na mais completa intimidade, é uma frágil fortaleza, um ritual sobrevivente sem o mundo que lhe deu suporte - o das práticas aristocráticas de uma autossuficiente classe média parisiense, cada vez mais acuada.

Este descompasso fica explícito em detalhes: a porta arrombada, a dificuldade para agendar um mínimo serviço doméstico, o aluno "globetrotter" da ex-professora de piano, uma filha e um genro acanalhados em meio à crise econômica, a enfermeira violenta, o enterro de um amigo (assistido por Georges - nunca saímos, como espectadores, dos limites desta casa) ministrado por um padre idiota e ao som de Yesterday.    

Não vejo ética alguma ali, talvez apenas no gesto limítrofe da eutanásia feita por Georges, mas a espectralidade de um mundo absolutamente privado (no sentido grego, privus), não político, a mera vida em sua mitologia asfixiante e brutal. O mundo externo é este espaço indômito e confuso onde Georges, ao fim do filme, lança-se para também encontrar a morte, ou a pomba incomodativa que, ao entrar, desmorona uma alucinação fechada.

Como é viver entre os escombros? É possível habitar ruínas? Os interiores podem defender alguém da barbárie e da catástrofe? A resposta do filme é negativa.

A experiência da morte não mais é ritualizada, porém, justamente por sua denegação, prolifera em todos os espaços da cultura contemporânea, como violência, como trauma, como medo assustador que faz com que sucumbamos a uma indústria tanatológica de fármacos e dispositivos médicos que apenas mantém a sobrevida.

A cena do pesadelo de Georges é a metáfora desta interioridade asfixiante, ilhada.

Supus que magrebinos famintos, tão presentes na cidade de Paris, estivessem ocupando o antigo condomínio. Ou, em uma interpretação delirante, que a cidade estava tomada por  barricadas. Mas Haneke é fiel ao insustentável, é rigoroso na exposição de uma tragédia doméstica. Não nos dá chance de fuga. Também nos percebemos, ao fim, emparedados. 

(Apenas uma exterioridade política pode arejar o mofo de oikia claustrofóbicas).         


Imagem: Cabeça de Medusa - Michelangelo Merisi Caravaggio (1598)


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