Esse
título não é uma provocação, nem recobre uma empreitada insidiosa de captação.
Não se trata de tentar arrastar Blanchot para o lado dessa nova correção (portanto, indecência) política que toma a forma de um “retorno
à religião”, tão enfermo e insípido como todos os “retornos”.
Trata-se
somente de considerar isto: o pensamento de Blanchot é tão exigente, vigilante,
inquieto e alerta ao ponto de não ter acreditado que deveria se firmar naquilo
que se impunha, no seu tempo, como uma correção
ateia ou como um bom tom de
profissão antirreligiosa. Entretanto, não é que esse pensamento tenha ficado
preso, ao que quer que seja, numa profissão ou numa confissão de sentido
inverso. Blanchot, seguramente, afirma um ateísmo, mas o afirma somente para
melhor conduzir à necessidade de afastar ao mesmo tempo e conjuntamente tanto o
ateísmo quanto o teísmo.
(Isso
acontece num texto maior de A Conversa
Infinita, “O ateísmo e a escritura. O humanismo e o grito”, no qual o
ateísmo é associado à escritura. Retornarei a isso sem, entretanto, citar nem
analisar tal texto ou nenhum outro: no espaço e no contexto dessa nota não se
trata de empreender uma análise. Contento-me com alusões a alguns topoi blanchotianos a fim de esboçar uma
direção para um trabalho que virá mais tarde.)
Descartar
juntos o ateísmo e o teísmo é considerar antes de tudo o ponto pelo qual o
ateísmo do Ocidente (ou o duplo ateísmo do monoteísmo: aquele que ele suscita e
que contém) até aqui jamais opôs ou substituiu Deus por outra coisa que não uma
figura, instância ou Ideia da pontuação suprema de um sentido: de um fim, de um
bem, de uma parousia – isto é, uma presença cumprida e, singularmente, a
presença do homem. É por tal razão que a associação do ateísmo à escritura –
associação provisória e prévia à deposição conjunta de pretensões teístas e
ateias – tem como meio encadear o ateísmo ao lado de um ausentar do sentido
que, é verdade, até aqui não foi capaz nenhuma figura notável do ateísmo (a não
ser, por um lado, essa figura tão próxima a Blanchot que é a ateologia de Bataille – a respeito da
qual não direi mais nada aqui).
O
“sentido ausente”, expressão algumas vezes riscada por Blanchot, não designa um
sentido cuja essência, ou a verdade, encontrar-se-ia na ausência. Esta última,
de fato, seria transformada ipso facto num
modo da presença não menos consistente do que a presença mais segura, mais existente [étante]. Mas um “sentido ausente” faz sentido na e por sua própria
ausência, de modo que, por fim, não pode deixar de “fazer sentido”. É assim que
a “escritura” designa, em Blanchot – e nessa comunidade de pensamento que o
liga a Bataille e Adorno, a Barthes e Derrida –, o movimento de exposição a
essa fuga do sentido que retira do “sentido” a significação para lhe dar o sentido
mesmo dessa fuga – um impulso, uma abertura, uma exposição incansável que, em
consequência, inclusive não “foge”, que foge a fuga tanto quanto a presença.
Nem o niilismo nem a idolatria de um significado (e/ou de um significante). Eis
aqui a aposta de um “ateísmo” que deve retirar de si mesmo a posição da negação
que profere, e a certeza de toda espécie de presença substitutiva àquela de
Deus – isto é, àquela do significante da absoluta significação ou
significabilidade.
Ora,
então temos que se o texto de Blanchot é isento de qualquer interesse pela
religião (além do fato de que uma cultura cristã e, precisamente, católica
aparece aqui ou ali de maneira notável, isso que deverá ser examinado mais
tarde), por outro lado, o nome de Deus não está simplesmente ausente: de modo
preciso, poderíamos afirmar que sustém nesse texto o lugar muito particular de
um nome que foge e que entretanto volta, que se encontra a cada vez (com pouca
frequência, mas o bastante para que o notemos) firmemente afastado, e logo evocado
no seu próprio afastamento, como o lugar ou como o índice de uma forma de
intriga da ausência do sentido.
(Mais
uma vez, se está completamente fora de questão aqui entrar nos textos, eu
simplesmente sugiro que releiamos rapidamente tanto Thomas l’Obscur – primeira e segunda versão – quanto L’Entretien infini e L’Écriture du désastre, ou ainda Le dernier à parler, para neles
verificar de maneira mais ou menos formal a presença do nome de Deus – talvez,
ainda que somente latente – e os aspectos manifestamente diversos, complexos,
isto é, enigmáticos de seu papel ou de seu teor.)
Se o
nome de Deus vem no lugar de uma ausência do sentido, ou como na linha de fuga
e na perspectiva ao mesmo tempo infinita e sem profundidade de campo dessa
mesma linha de fuga, é antes de tudo porque esse nome não diz respeito a uma
existência, mas, precisamente, à nomeação – que não seria nem a designação nem
a significação – dessa ausência. Não há aí, portanto, a justo título, nenhuma
“questão de Deus” que deveria ser colocada como a questão ritual da existência
ou da não-existência de um ente supremo. Semelhante questão se anula por si
mesma (sabemos disso desde de Kant, aliás, bem antes dele), já que um ente
supremo deveria ainda se encontrar em dívida com o seu ser ou com o próprio ser
em alguma instância ou em alguma potência (termos evidentemente muito
impróprios) impossível de organizar na ordem dos entes.
É
por isso que o dom mais precioso da filosofia consiste, para Blanchot, não,
inclusive, numa operação de negação da existência de Deus, mas num simples
desvanecimento, numa dissipação dessa existência. O pensamento só pensa a
partir daí.
Blanchot
não coloca nem autoriza nenhuma “questão de Deus”, mas, para além disso, ele
coloca e sabe que essa questão não se
coloca. O que quer dizer que ela não é uma questão e que ela não responde
ao esquema da demanda por uma atribuição no ser (“o que é?” ou “há?”). Deus não
é julgado por meio de uma pergunta. Isso não quer dizer que ele depende de uma
afirmação que responderia antecipadamente à questão. E tampouco de uma negação.
Não é questão de há ou não há Deus. De modo muito diverso, a questão é que há,
ou ainda, que se pronuncia o nome de Deus. Esse nome responde a uma deposição da questão, seja a questão do
ser (o quê?), a questão da origem (por meio de quê?) ou a questão do sentido
(por que?). Se toda questão visa um “quê”, um algo, o nome de deus responderia
à ordem, ao registro ou à modalidade daquilo que não é, ou ainda, daquilo que
não tem nenhuma coisa.
Nesse
sentido, aliás, esse nome em Blanchot às vezes rodeia palavras como “ser” (tal
como retomada de Heidegger) ou “neutro”. Tampouco para elas é possível colocar
a pergunta, uma vez que já está nelas deposta. Mas são palavras (conceitos)
enquanto “Deus” é um nome (sem conceito). O nome de Deus deve, portanto,
representar aqui outra coisa que um conceito e, mais precisamente, ele deve
carregar e tornar mais agudo um traço próprio ao nome como tal: à extremidade e
à extenuação da significação.
Sem
dúvidas, com esse nome acontece o mesmo que com o de Thomas, que poderíamos
qualificar de herói epônimo da escritura blanchotiana. No relato intitulado Thomas l’Obscur, no correr do qual o
nome de Deus aparece e opera em distintas retomadas, o nome de Thomas às vezes
se encontra designado como “a palavra Thomas”. A palavra thauma, em grego, significa a maravilha, o prodígio, o milagre.
Enquanto conceito, “Thomas” apresenta o milagre ou o mistério do nome enquanto
nome.
O
nome de Deus é dito por Blanchot, às vezes, “demasiado imponente”. Essa
qualificação mesclada de temor e reverência abre duas interpretações. Ou esse
nome impõe-se muito porque ele pretende impor e se impor como a pedra angular
de um inteiro sistema do sentido, ou ele é majestoso e temido na medida em que
revela a não-significância dos nomes. No segundo caso, esse nome nomeia uma
potência soberana do nome por meio do qual ele faz signo – o que difere
totalmente de significar – em direção a essa ausência do sentido tal que
nenhuma ausência daí possa vir suprir uma presença supostamente perdida ou
recusada. “Deus” não nomearia então nem o Deus sujeito do sentido, nem a
negação deste último em favor de um outro sujeito do sentido ou ainda do
não-sentido. “Deus” nomearia aquilo – aquele ou aquela – que, no nome, escapa à
própria nomeação, mesmo que esta possa sempre confinar o sentido. Assim, esse
nome des-nomearia o nome em geral enquanto persiste em nomear, isto é, em chamar. O que é chamado e em direção a
que é chamado não é de modo algum uma outra ordem senão aquela que Blanchot
designa por vezes como “o vazio do céu”. Mas o chamado a tal vazio, e nele,
coloca nesse nome uma espécie de pontuação última – ainda que sem última palavra... – a esse abandono do sentido que forma por sua vez a
verdade de um abandono ao sentido
enquanto que este último se excede. O nome de Deus assinalaria ou proferiria
esse chamado.
Na
conjunção do ateísmo e da escritura, Blanchot reúne, no mesmo texto e no mesmo
título, aquele do humanismo e do grito. O humanismo do grito seria o humanismo
abandonando toda idolatria do homem e toda antropoteologia. Se não é exatamente
no registro da escritura, também não é naquele do discurso – mas o grito.
Precisamente, “ele grita no deserto”, escreve Blanchot. Não é por acaso que
retome a distinta fórmula do profetismo bíblico. O profeta é aquele que fala
por Deus e de Deus, aquele que anuncia aos outros o chamado e a lembrança de
Deus. Nenhum retorno à religião se insinua dessa maneira: ao contrário, tenta
extrair da herança do monoteísmo seu traço essencial e essencialmente não
religioso, o traço de um ateísmo ou daquilo que poderíamos nomear um ausenteísmo além de toda posição de um
objeto de crença ou de descrença. Quase apesar dele, e como no limite extremo
de seu texto, Blanchot não cedeu ao nome de Deus – ao inaceitável nome de Deus
– pois soube que era ainda preciso nomear o chamado inominável, o chamado
interminável à inomeação [innomination].
Jean-Luc Nancy. Le nom de Dieu chez Blanchot. in.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 129-133. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Sandro Botticelli. João Batista. por volta de 1480. Galleria degli Uffizi, Firenze.
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