terça-feira, 12 de março de 2013

O nome de Deus em Blanchot



Esse título não é uma provocação, nem recobre uma empreitada insidiosa de captação. Não se trata de tentar arrastar Blanchot para o lado dessa nova correção (portanto, indecência) política que toma a forma de um “retorno à religião”, tão enfermo e insípido como todos os “retornos”.
Trata-se somente de considerar isto: o pensamento de Blanchot é tão exigente, vigilante, inquieto e alerta ao ponto de não ter acreditado que deveria se firmar naquilo que se impunha, no seu tempo, como uma correção ateia ou como um bom tom de profissão antirreligiosa. Entretanto, não é que esse pensamento tenha ficado preso, ao que quer que seja, numa profissão ou numa confissão de sentido inverso. Blanchot, seguramente, afirma um ateísmo, mas o afirma somente para melhor conduzir à necessidade de afastar ao mesmo tempo e conjuntamente tanto o ateísmo quanto o teísmo.
(Isso acontece num texto maior de A Conversa Infinita, “O ateísmo e a escritura. O humanismo e o grito”, no qual o ateísmo é associado à escritura. Retornarei a isso sem, entretanto, citar nem analisar tal texto ou nenhum outro: no espaço e no contexto dessa nota não se trata de empreender uma análise. Contento-me com alusões a alguns topoi blanchotianos a fim de esboçar uma direção para um trabalho que virá mais tarde.)
Descartar juntos o ateísmo e o teísmo é considerar antes de tudo o ponto pelo qual o ateísmo do Ocidente (ou o duplo ateísmo do monoteísmo: aquele que ele suscita e que contém) até aqui jamais opôs ou substituiu Deus por outra coisa que não uma figura, instância ou Ideia da pontuação suprema de um sentido: de um fim, de um bem, de uma parousia – isto é, uma presença cumprida e, singularmente, a presença do homem. É por tal razão que a associação do ateísmo à escritura – associação provisória e prévia à deposição conjunta de pretensões teístas e ateias – tem como meio encadear o ateísmo ao lado de um ausentar do sentido que, é verdade, até aqui não foi capaz nenhuma figura notável do ateísmo (a não ser, por um lado, essa figura tão próxima a Blanchot que é a ateologia de Bataille – a respeito da qual não direi mais nada aqui).
O “sentido ausente”, expressão algumas vezes riscada por Blanchot, não designa um sentido cuja essência, ou a verdade, encontrar-se-ia na ausência. Esta última, de fato, seria transformada ipso facto num modo da presença não menos consistente do que a presença mais segura, mais existente [étante]. Mas um “sentido ausente” faz sentido na e por sua própria ausência, de modo que, por fim, não pode deixar de “fazer sentido”. É assim que a “escritura” designa, em Blanchot – e nessa comunidade de pensamento que o liga a Bataille e Adorno, a Barthes e Derrida –, o movimento de exposição a essa fuga do sentido que retira do “sentido” a significação para lhe dar o sentido mesmo dessa fuga – um impulso, uma abertura, uma exposição incansável que, em consequência, inclusive não “foge”, que foge a fuga tanto quanto a presença. Nem o niilismo nem a idolatria de um significado (e/ou de um significante). Eis aqui a aposta de um “ateísmo” que deve retirar de si mesmo a posição da negação que profere, e a certeza de toda espécie de presença substitutiva àquela de Deus – isto é, àquela do significante da absoluta significação ou significabilidade.
Ora, então temos que se o texto de Blanchot é isento de qualquer interesse pela religião (além do fato de que uma cultura cristã e, precisamente, católica aparece aqui ou ali de maneira notável, isso que deverá ser examinado mais tarde), por outro lado, o nome de Deus não está simplesmente ausente: de modo preciso, poderíamos afirmar que sustém nesse texto o lugar muito particular de um nome que foge e que entretanto volta, que se encontra a cada vez (com pouca frequência, mas o bastante para que o notemos) firmemente afastado, e logo evocado no seu próprio afastamento, como o lugar ou como o índice de uma forma de intriga da ausência do sentido.
(Mais uma vez, se está completamente fora de questão aqui entrar nos textos, eu simplesmente sugiro que releiamos rapidamente tanto Thomas l’Obscur – primeira e segunda versão – quanto L’Entretien infini e L’Écriture du désastre, ou ainda Le dernier à parler, para neles verificar de maneira mais ou menos formal a presença do nome de Deus – talvez, ainda que somente latente – e os aspectos manifestamente diversos, complexos, isto é, enigmáticos de seu papel ou de seu teor.)
Se o nome de Deus vem no lugar de uma ausência do sentido, ou como na linha de fuga e na perspectiva ao mesmo tempo infinita e sem profundidade de campo dessa mesma linha de fuga, é antes de tudo porque esse nome não diz respeito a uma existência, mas, precisamente, à nomeação – que não seria nem a designação nem a significação – dessa ausência. Não há aí, portanto, a justo título, nenhuma “questão de Deus” que deveria ser colocada como a questão ritual da existência ou da não-existência de um ente supremo. Semelhante questão se anula por si mesma (sabemos disso desde de Kant, aliás, bem antes dele), já que um ente supremo deveria ainda se encontrar em dívida com o seu ser ou com o próprio ser em alguma instância ou em alguma potência (termos evidentemente muito impróprios) impossível de organizar na ordem dos entes.
É por isso que o dom mais precioso da filosofia consiste, para Blanchot, não, inclusive, numa operação de negação da existência de Deus, mas num simples desvanecimento, numa dissipação dessa existência. O pensamento só pensa a partir daí.
Blanchot não coloca nem autoriza nenhuma “questão de Deus”, mas, para além disso, ele coloca e sabe que essa questão não se coloca. O que quer dizer que ela não é uma questão e que ela não responde ao esquema da demanda por uma atribuição no ser (“o que é?” ou “há?”). Deus não é julgado por meio de uma pergunta. Isso não quer dizer que ele depende de uma afirmação que responderia antecipadamente à questão. E tampouco de uma negação. Não é questão de há ou não há Deus. De modo muito diverso, a questão é que há, ou ainda, que se pronuncia o nome de Deus. Esse nome responde a uma deposição da questão, seja a questão do ser (o quê?), a questão da origem (por meio de quê?) ou a questão do sentido (por que?). Se toda questão visa um “quê”, um algo, o nome de deus responderia à ordem, ao registro ou à modalidade daquilo que não é, ou ainda, daquilo que não tem nenhuma coisa.
Nesse sentido, aliás, esse nome em Blanchot às vezes rodeia palavras como “ser” (tal como retomada de Heidegger) ou “neutro”. Tampouco para elas é possível colocar a pergunta, uma vez que já está nelas deposta. Mas são palavras (conceitos) enquanto “Deus” é um nome (sem conceito). O nome de Deus deve, portanto, representar aqui outra coisa que um conceito e, mais precisamente, ele deve carregar e tornar mais agudo um traço próprio ao nome como tal: à extremidade e à extenuação da significação.
Sem dúvidas, com esse nome acontece o mesmo que com o de Thomas, que poderíamos qualificar de herói epônimo da escritura blanchotiana. No relato intitulado Thomas l’Obscur, no correr do qual o nome de Deus aparece e opera em distintas retomadas, o nome de Thomas às vezes se encontra designado como “a palavra Thomas”. A palavra thauma, em grego, significa a maravilha, o prodígio, o milagre. Enquanto conceito, “Thomas” apresenta o milagre ou o mistério do nome enquanto nome.

O nome de Deus é dito por Blanchot, às vezes, “demasiado imponente”. Essa qualificação mesclada de temor e reverência abre duas interpretações. Ou esse nome impõe-se muito porque ele pretende impor e se impor como a pedra angular de um inteiro sistema do sentido, ou ele é majestoso e temido na medida em que revela a não-significância dos nomes. No segundo caso, esse nome nomeia uma potência soberana do nome por meio do qual ele faz signo – o que difere totalmente de significar – em direção a essa ausência do sentido tal que nenhuma ausência daí possa vir suprir uma presença supostamente perdida ou recusada. “Deus” não nomearia então nem o Deus sujeito do sentido, nem a negação deste último em favor de um outro sujeito do sentido ou ainda do não-sentido. “Deus” nomearia aquilo – aquele ou aquela – que, no nome, escapa à própria nomeação, mesmo que esta possa sempre confinar o sentido. Assim, esse nome des-nomearia o nome em geral enquanto persiste em nomear, isto é, em chamar. O que é chamado e em direção a que é chamado não é de modo algum uma outra ordem senão aquela que Blanchot designa por vezes como “o vazio do céu”. Mas o chamado a tal vazio, e nele, coloca nesse nome uma espécie de pontuação última – ainda que sem última palavra... – a esse abandono do sentido que forma por sua vez a verdade de um abandono ao sentido enquanto que este último se excede. O nome de Deus assinalaria ou proferiria esse chamado.

Na conjunção do ateísmo e da escritura, Blanchot reúne, no mesmo texto e no mesmo título, aquele do humanismo e do grito. O humanismo do grito seria o humanismo abandonando toda idolatria do homem e toda antropoteologia. Se não é exatamente no registro da escritura, também não é naquele do discurso – mas o grito. Precisamente, “ele grita no deserto”, escreve Blanchot. Não é por acaso que retome a distinta fórmula do profetismo bíblico. O profeta é aquele que fala por Deus e de Deus, aquele que anuncia aos outros o chamado e a lembrança de Deus. Nenhum retorno à religião se insinua dessa maneira: ao contrário, tenta extrair da herança do monoteísmo seu traço essencial e essencialmente não religioso, o traço de um ateísmo ou daquilo que poderíamos nomear um ausenteísmo além de toda posição de um objeto de crença ou de descrença. Quase apesar dele, e como no limite extremo de seu texto, Blanchot não cedeu ao nome de Deus – ao inaceitável nome de Deus – pois soube que era ainda preciso nomear o chamado inominável, o chamado interminável à inomeação [innomination].

Jean-Luc Nancy. Le nom de Dieu chez Blanchot. in.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 129-133. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Sandro Botticelli. João Batista. por volta de 1480. Galleria degli Uffizi, Firenze.
   

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