domingo, 12 de maio de 2013

Pasolini, uma improvisação (de uma santidade)


Philippe Lacoue-Labarthe

De lui je ne sais rien que l'acte et que la mort.
L'une à l'autre ne donne aucune autorité
ni celle-là pourtant d'avance inscrite ni
l'autre le premier (ou peut-être le second)
où ne se lit nulle épitaphe nul indice
qu'il savait proche l'orage d'une sanction.
Aussi bien de toujours ne l'avait-il pas dit?

Hipótese I

"Talvez a santidade, desde a chegada do moderno, tenha encontrado refúgio (asilo) na arte: no ato da arte."

Santidade: é preciso arrancar seu significado do cristianismo pois aí ainda seria latente. Isto é, da religião - ela, provavelmente, indelével.
Moderna é a devastação, a desolação: aquele que aí se encontra e se mantém, solitário, portanto, mas não enlutado, é ateu, "privado de deus" (Sófocles, Édipo-rei, v. 661). Sua melancolia é heroica, é um furor, a cólera ("Ménin aeidé, Théa").
O ato, que é mais velho do que a obra, é o enigma de sua cessação: graça sem misericórdia. "Eu disse exatamente ato. Em nenhum caso é questão de criação. You know?"
A solidão - a desolação - é, com efeito, o deserto: ego vox clamantis in deserto, "o deserto cresce". Na tragédia antiga, na qual o deus é "presente na figura da morte", isso pode ser assim enunciado:

É uma grande procura da alma, no seu trabalho secreto, que no momento da mais alta consciência, esquiva-se da consciência (...). A consciência, em seu apogeu, compara-se então sempre a objetos que não têm consciência mas que acolhem, em seu destino, a forma da consciência. Tal objeto, eis o que é um país que se torna deserto, que na exuberância original de sua fecundidade amplifica excessivamente os efeitos da luz solar e, a partir de então, torna-se árido.
Hölderlin, Anotações sobre Antígona, 2 
*
Ele segue o antigo no seu traço: rastreia os vestígios. Vaga "sob o impensável" (Hölderlin, mas, desta vez, a respeito de Édipo).
*
Desamparado, abandonado - ele é simplesmente deixado. Se erra, em consequência, é governado exatamente por aquilo que lhe falta: aquilo lá mesmo.
"O que tu queres dizer, exatamente?"
*
A religião é camponesa: de modo permanente. Mas desligada, agora que a dissociação aconteceu, que eles foram todos deportados e que há a "desaparição dos vagalumes": Mors stupebit et natura...
*
A mãe e a criança na pradaria imemorável (vaffanculo) e o antigo barulho do vento: a apresentação do sopro, o mais acre. A mãe, uma lentidão; a criança, o gesto invertido do desejo, de uma precisão absoluta, mais potente do que a inocência que o turba.
Madame se mantém demasiado em pé na pradaria
Próxima de onde nevam os fios do trabalho...
[Madame se tient trop debout dans la prairie
Prochaine où neigent les fils du travail...] [1]
Rimbaud, Memória
*
Uma música, sagrada e coral, comum paixão distante, aí, irrespirável aura do bairro seco. Os rostos são primitivos, os sorrisos são aqueles da violência má e da obscenidade - da bondade pura.
A imundice. Os olhares são esquivos, e também sorrateiros, ousados. Coragem vã, mas coragem, furtiva, espasmódica: uma liberação.
*
A religião é familiar: a desamparada privação (de todos: pai e mãe, irmão e irmã, ou filho e filha) e a elevação improvável da camponesa, da servente (no grande coração?)
Branco é o instante.
Hölderlin, Pão e vinho
*
Atrás daqueles que podemos dizer em estado de semelhança com os santos, os desterrados de Assis ou de Siena, sujeitados mas em diálogo com as bestas, com os pássaros, sobretudo, há os gregos e sua selvageria oriental nativa: eles são brutais e ferozes, não verdadeiramente supersticiosos, mas inquietos, sem cessar, dirigindo seus ouvidos (O órgão do medo: noite e música) à escuta de um outro barulho. Tremem ao murmúrio daquilo que é, indiscernível, e eles o confessam (Hegel).
Outras vezes, no terror, eles estão mudos.
O céu dos santos é, sob seus passos, a própria terra. Eles, os gregos, caem e se levantam, não param de liberar a distância que jamais separa o mais alto do mais baixo.
*
Campesinato despovoado
Onde eles pressagiam as sentenças camponesas com sentido?
Hölderlin, Pão e vinho
*
Não há - eles não têm - mais idade.

Hipótese 2

"A santidade é uma disciplina da coisa. Ela engaja a experiência do abjeto." 

O santo prova o inumano no homem: o fato do homem, que o ultrapassa no interior, seu mais íntimo fora.
Interior intimo meo.
É sua ferocidade.
*
Ele diz:
É muito evidente que sempre fui de raça inferior. Eu não pude compreender a revolta. Minha raça jamais se levantou senão para saquear: assim como os lobos em relação à besta que eles não mataram.
Antes, ele reivindicava "a idolatria e o amor do sacrílego; - oh! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica a luxúria; - sobretudo a mentira e a preguiça". (Rimbaud, Une saison en enfer)
Não é falso, ele responde, mas tal é a revolta: manter este passo ganho, toda revolta é lógica etc.. Não a menor efusão. Já dito.
*
A religião: sempre arcaica: a coisa nos consome. Não cercá-la de precauções nem cerceá-la. Sem brilho. Os mais consequentes dispensam os objetos.
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Só há materialidade por fazer: sons, pigmentos; línguas, a luz. Ou corpos cuja alma é sua indecência.
Um nada o atrai.
*
Nenhum assassinato: é preciso evadir-se da figuração.
*
A santidade, por que ela exige e responde, é rigorosa, exata como um cálculo. Ela faz surgir um teorema, isto é, uma dor. Tal é o ato.
*
Isso pode se repetir assim:
É uma grande busca da alma, em seu trabalho secreto, que no momento da mais alta consciência se esquiva da consciência, e que, antes que o deus presente dela não tome posse efetivamente, afronta-o de uma maneira arriscada e com frequência até mesmo blasfematória, guardando assim viva a santa possibilidade do espírito.
Hölderlin, Anotações sobre Antígona, 2
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Ele prova o baixo, e isso é requerido pela contaminação. O chiqueiro não é o mundo, e a realidade o opaco desenvolvimento das coisas, por pouco, lampejo: o mal natural.
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(Assim que ele morre, falsamente crucificado, é pela verdade. Welles, se me lembro bem, não viu nada.)
*
É o animal que palpita nele e se esforça, o velho deus feroz, ouriçado. Eis por que sua própria história é natural, azul como um mito.
... eu desci à terra com um dever por procurar e a realidade áspera por abraçar! Camponês! - É dito de uma vez por todas.
*
Daí sua raiva, sua alegria, seu "É preciso" perfeitamente intratável. Cazzo. Ele não pede nem suplica, ele canta o suplício. Voz atonal soberba.


Três notas (por Armando Battiston)
Nenhuma efusão: Monk e Dolphy - não Coltrane; Morandi, Bram van Velde - não Kandinsky. Nada de "espiritual na arte".
São três, segundo as três religiões da Europa ocidental (hespérico): Kafka, Beckett e ele, Pasolini.
Praticamente, ele era justo.

[1] Há uma tradução ao português de Ivo Barroso: "A senhora mantém-se inteiriçada na planície / próxima onde nevam os fios de trabalho..."

Philippe Lacoue-Labrthe. Pasolini, une improvisation (d'une sainteté). Paris: La Pharmacie de Platon; William Blake and Co., 1995. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
   
 

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