T. J. Clark
O utopismo - essa invenção dos primeiros funcionários públicos modernos -, por outro lado, é coisa para senhores de terras, que têm tempo de cultivá-lo. É tudo de que os camponeses de Carlo Levi aprenderam a desconfiar. Bruegel o mostra bem. Sua obra Cocanha é, antes de mais nada, uma dessublimação da ideia de Paraíso - uma comédia não divina que só faz realmente sentido quando relacionada com todas as outras ofertas de vida celestial (comezinhas e fabulosas, institucionalizadas e heréticas) postas em circulação quando a cristandade começou a se fazer em pedaços. O alvo central do deboche de Bruegel é o impulso religioso, ou uma das principais formas (tanto mais saliente quanto maior é o afastamento da religião em relação às particularidades da vida) assumidas por esse impulso: o desejo de escapar da existência mortal, o sonho da imortalidade, a ideia do porvir: "E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram". A resposta que Bruegel dá ao livro do Apocalipse - e sua voz não é outra senão a da cultura camponesa, em uma de suas modulações inerradicáveis - é que todas as visões de evasão e perfeição são assombradas pelas realidades mundanas que pretendem transfigurar. Todo Éden é uma intensificação do aqui e agora: a imortalidade é um prolongamento da mortalidade; toda visão de bem-aventurança é material e apetitosa, encorpada e corriqueira e centrada no presente. O homem que emerge da montanha de mingau, no segundo plano da cena, é a personificação do "moderno". Foi à força de se empanturrar que ele conseguiu entrar na comunidade dos santos. O jovem deitado no chão à direita, com as penas de escrever no cinto e a Bíblia ao lado, podemos vê-lo como ninguém menos que São Thomas More; acordado, mas comatoso em sua criação. E o rapaz que dorme sobre o seu mangual? Quem mais se não o próprio Ned Ludd?
As utopias tranquilizam a modernidade, dizendo-lhe que seu potencial é infinito. Mas por quê? Ela deveria aprender - ser ensinada - a encarar o fracasso.
Por uma esquerda sem futuro. Trad. José Viegas. São Paulo: Ed. 34. pp. 57-59. Imagem: Pieter Bruegel, o Velho. A Terra da Cocanha. 1567. Alte Pinakothek, Munique.
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