Para minha destinatária impossível.
Querida, o mundo cabe na brisa de um suspiro. Toda vez que penso que talvez poderia ter tido sua possibilidade, lembro também que jamais esse tempo composto condicional - esse poderia ter tido - constitui uma possibilidade, senão a falência de todas elas. Ainda hoje pensei em te escrever, depois de meses. Hesitei e, depois de lembrar de um sorriso teu, comecei, inadvertidamente, como um boneco ventríloquo nas mãos de seu senhor. Esta carta pode ser a última, como deveria ter sido a última (o que só confirma a fragilidade dos tempos compostos), porém, ainda pulsa em mim um diálogo infinito com tua voz, meiga e, ao mesmo tempo, dura. Há sempre um resto de conversa que fica, um não dito que permanece latente, como que a querer, a todo instante, nos fazer calar diante de um suposto encontro dos nossos olhares - encontro este que poderia ter acontecido horas, ou dias, ou meses, ou anos atrás. A composição dos tempos parece ser um empecilho, querida: eu, num aqui-agora inadmissível, tu, num aqui-agora para mim de todo desconhecido. Há aqui, na minha frente, enquanto escrevo, um casal que se despede. Tristes e com lágrimas nos olhos, parecem dizer um adeus que nem Borges poderia supor. Talvez seja de fato a última vez que se veem; ou, ainda, por não saber o porquê da despedida, tudo não passe de elucubração da minha parte. Mas algo me parece certo: poderiam não ter se despedido. Tudo se compõe, querida, como esses tempos faltantes e condicionantes da vida. O imprevisível desta minha carta está no fato de que eu já poderia ter decidido não escrevê-la - como, porventura, em outro dia nublado, tenha feito. Entretanto, aqui estão estes sinais, aborrecidos e teimosos e aos quais chamamos letras, formando seu composto (que em língua inglesa é seu homônimo) de que mais gostam: a carta. Já te disse que cartas são mapas que, por sua vez, não conseguem dar conta de nenhum lugar (e, como o mapa da China borgeano, estas minhas cartas jamais dão conta do que eu poderia ter te contado). Todavia, querida, ainda há pouco sentida, no meu peito descoberto, a brisa do meu próprio suspiro me fez lembrar de ti. Foi como a passagem do mundo pelo meu peito desnudo, foi como o toque de um deus cadavérico à espera da reencarnação, foi como ouvir sua voz impossível. De todo modo, querida, escrevo como esse suspiro; de uma só vez, sem ler nem reler o que escrevo, como que a tentar surpreender minha voz enquanto escrita, como que a tentar apanhar, em pleno voo, a cotovia das lembranças que me dita essas palavras, como que a sorrir, como te vi, de soslaio, enquanto a brisa do meu sopro tocava minha pele. Sem mais, querida, espero - sem esperanças - poder vê-la num agora incomposto, num tempo em que, talvez, não haja condições, mas tão somente nossas vozes a se abraçar, sem choro e sem letras, como que a borrar as letras desta carta que, talvez, tenha o desenho do mapa que sempre quis te dar.
Do seu remetente impossível.
p.s.: nos meus pós-escritos, sempre vão notícias dos postais. Aqui te mando um postal com o mapa zodiacal do hemisfério sul, desenhado por Dürer, em 1515.
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