sábado, 19 de abril de 2014

Pequeno delírio em parágrafo XVIII



Brincando com sonhos aprendi a inventar o universo. Nada escapava às mãos da criança que ainda sorria ao acordar e perceber que deixara um imenso mundo para trás. Era uma perda, mas, ainda assim, havia um outro mundo por desbravar. O silêncio da manhã ocupava todo o espaço desse grande nada demasiado cheio que era o dia que se iniciava. Como podia estar há pouco num campo de imagens descontroladas e, de repente, às luzes e cheiros do dia, tudo era trespassado por um nada de imaginação? O mundo do dia era muito complexo na sua falta de sentido; restava-me, portanto, apenas o desejo da próxima noite e, assim, as novas brincadeiras com a imensidão da imaginação (os jogos, que Huizinga pensara ser um elemento fundamental à constituição dessa abstração chamada "homem"). Enquanto isso, a ânsia de tentar, neste mundo aniquilado que ainda assim devia ser descoberto, constituir sentidos. A literatura, ao postular o universo (a complexidade, diria Borges), podia ser alento às luzes da vigília. Os primeiros poemas que tentavam dizer um sentimento, o desconforto com as sensações intransmissíveis, a ausência (de tudo e do nada que lhe fazia companhia) como primeiro motor da angústia; perceber que o mundo do dia era, segundo a convenção dos adultos, inequívoco, exato, coerente. Hoje, sob os ventos da memória ou do esquecimento (ambos inventivos), talvez pense que a falha persista - e, é possível, há nesse pensamento uma dose amarga de vitalidade. Qualquer mundo por desbravar se mostra fraudulento; todo sonho não é senão a porta de ingresso nos jogos da invenção; e os dias, submetidos às práticas da memória e do esquecimento, passam, e só me resta continuar a invenção do meu universo...

Imagem: Coreggio. A educação do Cupido. 1528. National Gallery, Londres.

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