quinta-feira, 8 de maio de 2014

Pequeno parágrafo sobre a escuridão


Abraçar o véu da noite horas a fio e nenhum vazio da escuridão poderia ser mais cheio. Talvez fossem os mesmos pássaros noturnos que, com seu canto obscuro, assombravam Murilo Mendes ao anunciar uma vida livre cujo segredo escapa aos nossos ouvidos. Resquícios da mente ébria, dos espectros que se avolumavam nos retratos não tirados, nas memórias desgastadas, no presente jogado sobre a cama ao lado. Silêncio e Francis Ponge riscado pelo poeta que o lê: "as opiniões mais bem fundadas, os sistemas filosóficos mais harmoniosos (os mais bem constituídos), sempre me parecerem absolutamente frágeis, causaram certa náusea, melancolia, um sentimento doloroso de inconsistência." Aprofunda-se, ainda mais, a noite. Um poema em prosa? Talvez apenas a vida que acena à escuridão, à sensação mais absoluta de desesperança, como que a dizer que já é impossível pintar, seja em mapas ou em cartas, qualquer traço de seu rosto. Mas, talvez, ainda cantam os pássaros passando com seus rasantes a desafiar a morte; ou talvez tenha sido o anjo que se esqueceu de pintar minha porta com o sangue do cordeiro; tudo e nada, vértice ou vórtice, delírio e amor, clareza ou escuridão. 

Imagem: Foto de uma página do exemplar de Le Grand Recueil. Méthodes, de Francis Ponge, que pertencia a Murilo Mendes.

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