Não há mundo comum. Jamais houve. O pluralismo está
conosco para sempre. Pluralismo de culturas, sim, das ideologias, das opiniões,
dos sentimentos, das religiões, das paixões, mas também pluralismo das
naturezas, das relações com os mundos vivos, materiais e também com os mundos
espirituais. Nenhum acordo possível sobre o que compõe o mundo, sobre os seres
que o habitam, que o habitaram, que devem habitá-lo. Os desacordos não são
superficiais, passageiros, devidos a simples erros de pedagogia ou de comunicação,
mas fundamentais. Eles ferem as culturas e as naturezas, as metafísicas
práticas, vividas, vivas, ativas. Inútil, por consequência, dizer: “Nós talvez
diferimos superficialmente por nossas opiniões, nossas ideias, nossas paixões,
mas, no fundo, somos todos semelhantes, nossa natureza é a mesma e aceitamos
colocar de lado tudo o que nos separa, e então iremos partilhar o mesmo mundo,
habitar a mesma morada universal”. Não, se nós colocamos de lado o que nos
separa, não há nada que nos resta para colocar em comum. O pluralismo fere
muito profundamente. O universo é um pluriverso (James).
A política, o que chamamos ordinariamente por esse nome,
simplificou em demasia sua tarefa. Poderia haver pessoas que conhecem de
antemão do que se compõe o mundo comum, e seria suficiente fazê-lo advir pela
eliminação gradativa de tudo o que nos separa, de tudo o que nos coloca em
desacordo. Seria suficiente colocar de lado as metafísicas particulares e entraríamos
em acordo sobre certo número de princípios universais. Graças às vanguardas (de
direita como de esquerda) entraríamos em acordo. Haveriam discussões,
resistências, batalhas violentas, talvez, mas o sentido do progresso, a flecha
do tempo, iria justamente numa direção notável, caminharia direito: revelar sob os
desacordos superficiais a irrupção progressiva, progressista, desse universal,
desse mundo comum que está, no fundo, já aí, escondido, em cada um de nós.
Saberíamos o que está no mundo e seria suficiente revelá-lo. A política seria
uma ciência: uma ciência do mundo comum já presente, este que seria preciso
apenas fazer advir lutando contra todos os desacordos superficiais daqueles que
não compreendem que já estão profundamente em acordo. Em acordo pelas leis da
economia; pelas leis da biologia; pelas leis da natureza; pelas leis da moral;
pelas leis da religião revelada (esta e não outra); pelas leis da discussão
racional; pelas leis da política – as leis, as duras leis da política. Mas, em
todo caso, existiriam leis.
Evidentemente, isso não é bem assim, uma vez que já há
tantas leis, tantas ciências, tantos mundos comuns aí que há metafísicas
caminhando ao lado do mundo. A política não é uma ciência, jamais poderá sê-lo,
com qualquer nome que dermos a ela e a qualquer ciência que nos confessarmos. É
uma arte, ou, ainda, artes, o que chamamos justamente as artes política. As
artes pelas quais procuramos compor de modo progressivo o mundo comum. O mundo
comum deve ser composto, tudo está aí. Ele já não está enterrado na natureza,
em um universal, dissimulado sob os véus amassados das ideologias e das crenças
as quais bastaria deixar de lado para que o acordo se faça. Ele deve ser feito,
deve ser criado, deve ser instaurado. E, portanto, pode ser perdido. Aí está
toda a diferença: se o mundo comum deve ser composto, podemos falhar na sua
composição. A flecha do tempo avança, ou retrocede, ou se interrompe, de acordo
com a maneira que o compomos. Nada de inevitável. Nada de inelutável. Nenhum
sentido da história. E, ao mesmo tempo, sim, nós o compomos de maneira
progressiva. Mas não é o mesmo progresso de antes, quando acreditávamos “na”
ciência política. Sempre há “homens e mulheres de progresso”, progressistas e
reacionários, mas, não obstante, isso depende do modo que conseguem ou não essa
composição, a qual não tem mais nada de inevitável ou de inelutável. E,
portanto, pode acontecer de nos enganarmos a todo instante quando marcamos com
uma cruz aqueles que são do lado bom e aqueles que são do lado mau da história.
Os lados têm uma furiosa tendência a variar, as partes a mudar de campo, sem
falar das consequências inesperadas de nossas ações que multiplicam as
hesitações sobre o sentido e o percurso da composição.
As artes políticas devem hesitar, tatear, experimentar,
retomar, sempre recomeçar, refrescar continuamente seu trabalho de composição.
Cada objeto de preocupação, cada caso, cada coisa, cada “issue”, cada
preocupação: será preciso recomeçar. Não há nada que possamos transportar tal e
qual de uma situação a outra; a cada vez será preciso ajustar e não aplicar,
descobrir e não deduzir, especificar e não normalizar, descrever – antes de
tudo, descrever. São artes, justamente, artifícios, astúcias, competências,
artesanatos, práticas – não ciências. [...]
As artes políticas estão tão longe da ciência (política)
quanto das artes. E ainda mais longe do que chamamos de arte pública, a criação
de uma esfera pública: como se soubéssemos o que é o público! Como se o público
não fosse um fantasma, um ser oculto, um ser eclipsado, capaz de aparecer,
talvez, mas também de desaparecer, de se eclipsar – como hoje, quando o público
parece ter desaparecido para sempre (Dewey). É por que o público deve ser
composto, caso por caso, questão por questão, preocupação por preocupação, que
não há de fato um público – assim como já não há um mundo aqui, que seria
preciso revelar. O público pode desaparecer a todo instante se falhamos na sua
composição. Nada de mais frágil do que o público (Lippmann). Fazer advir o
espírito público é infinitamente mais difícil, mais raro e mais próprio a todos
os tipos de manipulação do que virar a jogo: “Espírito, és tu?”. Silêncio para
toda resposta – e não tomemos os ruídos de pedestais como sua mensagem
criptografada.
De que se compõe, hoje, o que chamamos comumente a
política? De um repertório patético de imitações de imitações de imitações
daquilo que um dia foram, há dezenas de anos, melhor, de séculos, grandes
invenções, grandes instaurações de obras coletivas. Um repertório de paixões,
de atitudes, de palavras históricas que se reduz sem cessar a cada gasto, cada
vez mais inútil, que se torna menos legível em cada passagem, como uma
fotocópia da fotocópia da fotocópia. Há um mundo, um pluriverso a ser composto
e temos, para afrontá-lo, três ou quatro paixões, duas ou três reações, cinco
ou seis sentimentos automáticos, algumas indignações, um pequeno número de
reflexos condicionados, algumas atitudes bem intencionadas, um punhado de
críticas já feitas. De um lado, uma multidão, de outro, quatro ou cinco
conceitos. E gostaríamos de compor a primeira com os segundos! Sem busca e sem
obra – sem obra, novamente, sem retomar tudo fresco, mais uma vez, pois não há
nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do que o recompondo, do
que retomando desde o início o movimento de composição.
Bruno Latour. Il
n’y a pas de monde commun: il faut le composer. In.: Multitudes. N. 45.
Special, été 2011. Disponível em: http://www.multitudes.net/il-n-y-a-pas-de-monde-commun-il/
(Tradução: Vinícius N. Honesko)
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