domingo, 30 de novembro de 2014
Caproniana
A palavra só diz
quando se diz:
ninguém disse palavra.
Imagem: Vincent van Gogh. O semeador. 1888. Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdam
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
À destinatária impossível
Para minha destinatária impossível.
Querida, por trás de cada desenho esconde-se a mão, o sopro de seus ágeis movimentos e o segredo arredio dos olhos que acompanham as linhas no papel. E o mundo se torna um erro nesses traços. Erro que não erro, mas que me leva adiante, querida, a um mar sem céu e sem ondas onde um dia erramos o lugar de nosso impossível encontro. Há um movimento também nas minhas mãos, mas meus olhos se escondem do que por elas, tão arredias, é gravado. O que era uma bússola a guiar meus sonhos, hoje é apenas uma esfera vazia, tal qual meus olhos perdidos em devaneios nesse mar sem ondas. Talvez aqui espere pela próxima lufada de vento, talvez aqui em mim sejam despertas - por não sei qual deus das águas - novas palavras com as quais desenhar um novo mundo, no qual não mais volte a perceber sua impossibilidade. Mas tudo isso são conjecturas, querida, como a vida que há pouco dava adeus ao poeta que cantava passarinhos. Não digo que este dia da despedida já chegou, ainda que o deus desconhecido das águas desde há tempos me fala que esse dia já passou (e desconfio pois o deus e o dia são a mesma coisa, são a luz que sobra em meio às sombras do uni-verso). Como dizer a você que já não há tempo para tudo, que não há tempo para cada coisa? Como dizer que o Eclesiastes estava completamente equivocado? Esta carta, escrita tal como as milhares de cartas dos marujos dos séculos, só diz que o mar ainda é grande, querida, e que talvez eu não consiga me livrar da falta de ventos e, sem eles, jamais encontre em você qualquer possibilidade. E cada desenho se faz mais incompreensível, e nenhum sopro de mãos parece dar conta das linhas, e todos os olhos carregam olhares vazios. Por que insisto em lhe dizer? Por que uma carta nova me surge a cada vez que mergulho a mão neste mar sem ondas? Não penso respostas e, tão logo tomo em mãos o papel que logo será seu, volto a errar o velho mundo, um velho mundo, o meu velho mundo, o único em que ainda posso traçar, em erro, um destino que jamais poderá cruzar com o seu...
Do seu remetente impossível.
Imagem: Johannes Vermeer. O astrônomo (detalhe). 1668. Museu do Louvre, Paris.
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Estudo sobre a memória IX
A Manoel de Barros
É tempo de experimentar o tempo,
e as musas, as ditadoras do país da poesia,
sondam e espreitam o momento oportuno
para o próximo golpe.
Com as musas, um poeta tentou trocar olhares,
mas elas eram todas cegas.
Ah, gente tão pura recolhida na luz e nutrida de silêncio!
Amarrei, também eu, meus sonhos no poste da vida:
por que já pretendes ir, Manoel?
O tempo não é todo ele de sonhos?
Ainda é preciso muita inutilidade,
muita sombra no império da lucidez.
E minha musa cega perde também a palavra.
Silenciosa e muda, agora me dita em outra língua:
a dos mapas perdidos, a das cartas extraviadas,
a de um mundo que se foi.
O tempo se soltou do poste e correu
para um jardim onde, cegas e mudas,
passeiam nuas as inúteis musas de outrora.
Imagem: Johannes Vermeer. Mulher dormindo à mesa. 1657. Metropolitam Museum of Art, New York.
sábado, 8 de novembro de 2014
Estudo sobre a memória VIII
Louros de uma vitória injusta,
prados já há tempos queimados,
palavras em silêncio
agora que te ausentas.
Já não és uma presença
e qualquer sinal de Deus
se desvanece na injustiça
desses silêncios semoventes.
Apagados os traços das cinzas,
todas as almas se regozijam
com o uni-verso dos poemas
impressos nas tuas pegadas.
O cantar se faz sopro do tempo,
amálgama de sonhos e fogo,
promessas de um retorno impossível
e Ítaca que aparece no horizonte.
Não mais te percebo nem em devaneio,
apenas me dás uma imagem de outrora:
já veneno, abatida por estas armas
que são as palavras silenciosas
de todo poema...
Imagem: Johannes Vermeer. Mulher segurando balança. 1662-3. National Gallery of Art, Washington.
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Estudo sobre a memória VII
Do lugar de onde provêm essas vozes, nada se sabe.
É um ermo, um vazio que, talvez, mais do que povoado de vozes,
seja ele mesmo as vozes que nos ludibriam e,
assim, fazem-nos inventar esse lugar.
Sobre o que falam tais vozes?
O que nos contam ao pé do ouvido?
A mim, soam como trombetas de arcanjos perdidos,
dizem-me "eu te amo" como se amor houvesse.
Elas, as vozes, aparecem aladas e em cada bater de suas asas
uma brisa me enche de torpor.
Ah, vozes antigas! Com a velocidade de suas asas,
caio para trás e me sento à espera de seu próximo rasante.
Mas por que me sondam se já não me dizem nada?
Por que voar no meu céu, onde só há o vazio?
E, por que, me pergunto, ainda as espero?
Imagem: Johannes Vermeer. O Concerto (detalhe). 1665-6. Isabella Stewart Gardner Museum, Boston.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
Pequeno parágrafo sobre a saudade
Se todas as cores do mundo pudessem ser vistas de uma só vez, não haveria lugar melhor para isso do que um olhar perdido em devaneios. A luz perdida nos olhos me faz perceber uma obtusa lógica da saudade. Mas, de pronto, percebo que nada é mais tolo do que sacar uma razão aí onde a desrazão encontra seu lugar absoluto. Todas as cores e nenhuma delas, todos os sonhos e uma tela em branco, todas as palavras à disposição e nenhum verso escrito. Os sonhos de um poeta marginal jamais se deixarão pintar e, em tais sonhos, apenas uma saudade doce devora o poeta. Ele só quer perceber as luzes da perdição, as luzes desse vazio (e não seria isso devanear?) que o preenche. Busca inspiração na saudade, mas logo percebe que o rosto que desenharia já lhe é de todo desconhecido. Pensa em escrever uma carta, e se dá conta de que jamais conseguiria endereçar algo a alguém. Resta-lhe aquela obtusa lógica e, com ela, seus passeios por esse vazio ao qual se dá o nome saudade...
Imagem: Johannes Vermeer. Mulher escrevendo um carta com sua empregada. 1670. National Gallery of Ireland, Dublin.