domingo, 30 de abril de 2017

Modos de dizer não, Antônio Carlos Gomes Belchior


O que expressa, o que desesperadamente grita a morte neste 30/04/17 de um dos principais poetas brasileiros e da língua portuguesa, um poeta que passou os últimos dez anos evadindo-se? A morte de Belchior, precedida por tentativas de desaparecer, não só das dívidas, mas das relações como um todo, diz muito não apenas sobre o colapso político brasileiro - e arte e política são indiscerníveis na produção de Belchior - mas sobre o que realmente pode a arte nestes tempos equívocos, tempos acelerados por uma máquina girando no vazio cujas engrenagens não conseguimos interromper. 
Seus últimos gestos, de alguém que dizia ser nada mais que um estudante da vida que desejava dar, foram além de qualquer canção: foram atos de uma fuga permanente. Não ao exílio midiaticamente edulcorado dos intelectuais da década de 70, e não apenas ao interior do país - lugares despidos de épica e de brilho, pequenas cidades do Rio Grande do Sul ou do Uruguai, que quiçá em pouco tempo alimentarão mitologias sobre esta passagem, - mas a um Sul inexistente, à América Latina de um impossível, quixotesco e imponderável Dante latino-americano (seu último projeto era a tradução da Divina Comédia). Belchior, com seu cancioneiro e com sua vida, forjou uma heterotopia dificilmente capturável pela máquina porno-espetacular-financeira que hoje a tudo devora. E não fez de sua evasão matéria de imposturas ou auto-promoção, mesmo quando confrontado pela invasão da TV fascista nacional. A música de Belchior fez parte de minha formação. Com uma tristeza no ar e uma sensação de noite histórica, cito trechos de alguns destes poemas, com suas frases longas que soam como prosa musicada, ou como próprio Belchior definiria, um palo seco, se lembrarmos de uma antiga forma do flamenco, onde a ênfase musical está nas palavras, sem a necessidade de acompanhamento por instrumentos (são puramente acessórios, na obra de Belchior, o violão ou arranjos). São músicas que podem soar como poemas, diário íntimos recitados publicamente, manifestos políticos contundentes ou modos de dizer não.
"Mas não se preocupe meu amigo com os horrores que eu lhe digo, isso é somente uma canção. A vida realmente é diferente, quer dizer ao vivo é muito pior." "Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve, correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém". "Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente, tome um refrigerante, coma um cachorro-quente, sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem, tem essa pressa de viver. Meu bem, mas quando a vida nos violentar, pediremos ao bom deus que nos ajude, falaremos para a vida: vida, pisa devagar meu coração cuidado é frágil; meu coração é como vidro, como um beijo de novela, meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver, e esse jeito de deixar sempre de lado a certeza, e arriscar tudo de novo com paixão. Andar no caminho errado pela simples alegria de ser". "Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Nem em tinta pro meu rosto, ou oba oba, ou melodia para acompanhar bocejos, sonhos matinais, eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas do oriente, romances astrais, a minha alucinação é suportar o dia-a-dia, é meu delírio, é a experiência com coisas reais". "Viver a divina comédia humana onde nada é eterno, ora direis ouvir estrelas, certo perdeste o senso.
Eu vos direi no entanto: enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não, eu canto." "Os filhos de Bob Dylan, clientes da Coca-Cola, os que fugimos da escola, voltamos todos pra casa. Um queria mandar brasa; outro ser pedra que rola...Daí o money entra em cena e arrasa, e adeus, caras bons de bola!" "Eu ando pelo mundo prestando atenção, em cores que eu não sei o nome. Cores de almodóvar, cores de frida kahlo, cores, passeio pelo escuro, eu presto muita atenção no que meu irmão ouve e como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora, eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa, filtrar seus graus, eu ando pelo mundo divertindo gente, chorando ao telefone, e vendo doer a fome nos meninos que têm fome." No corcovado quem abre os braços sou eu, Copacabana esta semana o mar sou eu, como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel e o que é paixão." "Não quero regra nem nada, tudo tá como o diabo gosta, tá, já tenho este peso, que me fere as costas, e não vou, eu mesmo, atar minha mão. O que transforma o velho no novo, bendito fruto do povo será. E a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter; é nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer,
Nunca reverenciar." "Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei, jovem que desce do norte pra cidade grande, os pés cansados e feridos de andar légua tirana, de lágrimas nos olhos de ler o Pessoa, e de ver o verde da cana, em cada esquina que eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria, examinando o 3x4 da fotografia, e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha. Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem, Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua, a noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria, e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer.. A minha história é talvez, é talvez igual a tua, jovem que desceu do norte, que no sul viveu na rua, que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo, que ficou desapontado, como é comum no seu tempo, que ficou apaixonado e violento como você, eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você que me ouve agora. "Se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava. Sei que assim falando pensas Que esse desespero é moda em 76, mas ando mesmo descontente, desesperadamente eu grito em português, tenho vinte e cinco anos, de sonho e de sangue e de América do Sul, por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um blues, sei que assim falando pensas, que esse desespero é moda em 76, e eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês". 

Os últimos anos de vida do poeta mostram a deserção e a recusa ao canto partida de alguém que disse que cantaria enquanto houvesse algum modo de dizer não. Pergunto-me se hoje a literatura, a música e a arte podem ainda expressar estes modos de dizer não, ou se não nos resta apenas apenas a hipótese Belchior - um continuador da tradição rimbaudiana no séc. XXI - da evasão concreta, contínua e sem transigências.   

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