quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Que venham os levantes!

                                                                   
                                           
    Jonnefer Francisco Barbosa 
                                                                                                                                  Departamento de Filosofia - PUCSP


"Só haverá liberdade quando o último dos parlamentares golpistas for enforcado nas tripas do último magistrado tucano"
adaptação da frase Jean Meslier (1664 - 1729)


Se em 2016 um golpe parlamentar inicia uma série de transformações estruturais no Estado brasileiro para atender rentistas, latifundiários e petrolíferas norte-americanas, selando a completa captura do país pela rapinagem da especulação financeira, então em 2018, na tentativa de anulação dos direitos políticos de Lula com uma condenação judicial completamente arbitrária, trata-se de demover mesmo as resistências sociais-democratas à implementação avassaladora de uma invasão imperialista.
Sim, precisamos chamar o golpe pelo seu verdadeiro nome: invasão neo-colonial imperialista, pois ataca locais estratégicos que sustentavam a relevância geopolítica brasileira no continente e no contexto internacional. As primeiras medidas dos golpistas foram a mudança do modelo de concessão para a exploração de petróleo, incluída a privatização a preços módicos de tecnologias que exigiram décadas de investimento (como a exploração de águas profundas), com a cessão de petróleo e outros minérios ao capital estrangeiro; a transferência de áreas estratégicas à tutela norte-americana (Boeing tornando-se acionista majoritária da Embraer, empresa brasileira responsável pela tecnologia militar aeronáutica - as parcerias de tecnologia com a Suécia, como a compra de caças, serão inviabilizadas e certamente terão seu sigilo quebrado pelos americanos); aprovação de uma emenda constitucional que estabeleceu um limite de gastos em direitos sociais; e, por fim, a tentativa neo-escravista de, além de acabar com a legislação trabalhista, destruir a superavitária previdência brasileira para geração de dividendos ao mercado: segundo estudos da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), os gastos federais com saúde, assistência e previdência somaram, em 2014, 632 bilhões de reais, com um orçamento de R$ 686 bilhões, restando R$ 54 bilhões de superávit. Porém pouco se discutiu sobre um infame dispositivo chamado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite a transferência de parte destes valores para pagamento da dívida pública, ou seja, para benefício de rentistas. O grande problema da previdência são, portanto, as vultosas somas que são redirecionadas de forma criminosa ao mercado, em desacordo com o modelo implementado pela Constituição de 88, e não o suposto "déficit".
Todos estes retrocessos somam-se a um processo de militarização do estado brasileiro, com a lei 13.491/17, sancionada por Temer, que amplia a competência da Justiça Militar inclusive para crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais no exercício da função: trata-se de dispositivo que não só oficializa a guerra contra os mais pobres nas periferias, mas também libera uma arena sangrenta para a guerra contra os levantes populares. 
Diante deste cenário de catástrofes planejadas e engendradas, o que resta às forças de esquerda no país? Voltamos à pergunta de Lênin de 1901, o que fazer? Não há qualquer esperança de que a mudança ocorra automaticamente, ainda mais com a atual vitória política da direita com a articulação dos golpistas para não permitir que forças progressistas retornem pela via eleitoral. Só podemos começar com a auto-crítica da própria esquerda.   


- Não se pode esperar que a direita no Brasil esclareça-se com discursos, é preciso abandonar o projeto iluminista e consensual.  A guerra foi declarada, inclusive com a quebra da institucionalidade. O poder que mantém as decisões golpistas do parlamento e do judiciário, seus cargos e regalias, surge de um poder constituinte. Esse pacto foi rompido. Em sua desconexão da potência que lhes sustenta juridicamente, instituições como judiciário e o congresso nacional brasileiro não apenas caem na ilegitimidade, mas se tornam ilegais. O próprio Estado brasileiro perdeu sustentação constituinte, portanto resta às esquerdas pensar não com conceitos jurídicos ou institucionais, mas com a tradição da violência revolucionária e das insurreições.  

- Dado que a direita, inclusive os "libertarianistas" ou anarco-liberais, politizou-se e ocupou partidos liberais de menor expressão, é urgente que esquerdistas radicais, taticamente, passem a ocupar o pequeno deserto dos partidos minoritários de esquerda, que infelizmente se tornaram, no Brasil, agremiações familiares parasitárias do fundo partidário. Há um arraigado apartidarismo entre a esquerda radical acadêmica, um grupo que nos últimos anos isolou-se e se tornou estritamente "teórico" e carreirista (a "esquerda lattes"). Simultâneo a este processo é o paulatino abandono da esfera política, relegando os partidos de extrema esquerda ao sectarismo politicamente neutralizador, ao enrijecimento conceitual e ao distanciamento da formação de bases. Um passo importante que intelectuais de esquerda não filiados podem dar como resposta à consolidação do golpe: filiar-se a um partido de esquerda com programa radical; iniciar a autocrítica no interior do partido; promover discussões, arejamentos, movimentos internos; retomar o velho trabalho de base emblemático dos partidos de esquerda do século XX. Tática a curto e médio prazo, pois é extremamente burocrática a criação de novos partidos no país, dificuldade associada também às barreiras implantadas pela última reforma política capitaneada pela direita.

- São urgentes os enlaces estratégicos entre movimentos urbanos, campesinos e indígenas. A força do movimento zapatista no México é a capacidade de reunir um politizado e insurgente movimento indígena com a presença de estudantes, professores e lúmpen campesino. Ao mesmo tempo, os movimentos políticos de esquerda se despotencializam ao se concentrarem nas capitais do eixo sudeste-sul. Esta centralização geográfica de representação é fictícia, forjada pelos meios de comunicação concentrados em conglomerados. É preciso deslocamentos, das capitais ao interior profundo, passando pelos estados mais remotos. As possibilidades insurgentes estão hoje atreladas a situações muito concretas e singulares que são desencadeadas pela reocupação imperialista: cito como caso emblemático a decisão judicial que permitiu a reintegração de posse concedida a uma madeireira conhecida por práticas de grilagem e desmatamento chamada Zattar, contra  uma comunidade rural na região de Pinhão, no interior do Paraná. Dezenas de famílias que estavam há mais de trinta anos no local foram desalojadas, medida que atacou também comunidades faxinalenses, modos únicos de produção coletiva e preservacionista, associados a práticas ancestrais de uso da terra em certas regiões do sudoeste do Paraná. Ou poderíamos mencionar a atuação da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), em Rondônia, movimento que teve muitos de seus militantes assassinados por latifundiários sem qualquer repercussão nos grandes meios de comunicação, sem laços concretos com movimentos políticos de grandes centros. Os levantes e os novos zapatismos no Brasil são desencadeados e ativados por resistências guerrilheiras locais que expõem potências e afetos comuns que não são apenas daquela territorialidade, extrapolam sua estrita localização.

-  Os ataques não são direcionados apenas ao Brasil: atingem outros países da América-Latina. Os golpes aconteceram também em Honduras e no Paraguai. A direita neoliberal ocupa hoje os governos da Argentina, Chile e Peru. Instabilidades são criadas no Equador, Uruguai e sobretudo na Venezuela. Colômbia e México são países com uma loga história de ocupação direta, sob o argumento da luta contra o narcotráfico. É preciso aprofundar laços estratégicos com a esquerda latino-americana e com o internacionalismo operário. 

- Os golpistas não podem ficar confortáveis. É o momento de luta e levantes, em bairros, escolas, universidades, quilombos, faxinais, com todas as armas possíveis, sobretudo as do pensamento e dos afetos.  

- Desde Darcy Ribeiro sabemos que só há duas opções: se resignar ou se indignar. No Brasil de 2018, é uma questão de sobrevivência política, pessoal e coletiva, não ceder à resignação.  

24/1/18


imagem: insígnia da Unasul 

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