terça-feira, 16 de maio de 2023

A guerra na Galícia - Giorgio Agamben

 


 

Havia no centro da Europa regiões que foram apagadas pela carta geográfica. Uma destas – não é a única – é a Galícia, que hoje coincide em boa parte com o território onde há mais de um ano se combate uma lamentável guerra. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a Galícia era a província mais distante do Império Austro-húngaro, nos confins com a Rússia. Com a dissolução do império Habsburgo, os vencedores, certamente não menos iníquos do que os vencidos, entregaram-na à renascida Polônia, como a Bucovina, que com ela fazia fronteira, fora também caprichosamente anexada à Romênia. Os confins, a cada vez redesenhados com lápis e borracha nos mapas geográficos pelos poderosos, saem do tempo em que são encontrados, mas é provável que a Galícia não voltará a reaparecer nos inventários da política europeia. Muito mais do que a cartografia, o que nos importa é o mundo que naquela região existia – isto é, os humanos que no Königreich Galizien und Lodomerien (esse era o nome oficial da província) respiravam, amavam, ganhavam a vida, choravam, tinham esperanças e morriam. Pelas estradas de Lemberg, Tarnopol, Przemysl, Brody (pátria de Joseph Roth), Rzeszow, Kolomea caminhava um conjunto variado de rutenos (assim então eram chamados os ucranianos), poloneses, judeus (em algumas cidades quase a metade da população), romenos, ciganos, hutsuls (que entre 1918 e 1919 constituíram uma república independente de breve duração). Cada uma dessas cidades tinha um nome diferente, a depender da língua dos habitantes que nelas conviviam, em cada uma delas as igrejas católicas das esquinas se transformavam em sinagogas e estas, por sua vez, em igrejas ortodoxas e igrejas católicas orientais. Não era uma região rica, aliás, os funcionários da Kakânia a consideravam a mais pobre e atrasada do império; era, todavia, justamente pela pluralidade de suas etnias, culturalmente viva e generosa, com teatros, jornais, escolas e universidades em várias línguas e um florescimento de escritores e músicos que temos ainda que aprender a conhecer. É esse mundo que, de um dia a outro, foi política e juridicamente aniquilado em 1919, e a é essa multiforme e intrincada realidade que a ocupação nazista (1941-1944) e depois a soviética algumas décadas depois deram o golpe de misericórdia. Mas ainda antes de se tornar parte do Império Austro-húngaro, a terra que levava o nome de Halyč ou Galícia (segundo alguns, de origem celta, como a Galícia espanhola), e que no fim do medievo estava sob o domínio húngaro com o nome de principado de Galícia e Volínia, de quando em quando era contestada pelos cossacos, russos e poloneses, até que a grã-duquesa Maria Teresa da Áustria se aproveitou da primeira divisão da Polônia, em 1772, para anexá-lo a seu império. Em 1922, o território foi anexado pela União Soviética, com o nome de República socialista soviética ucraniana, da qual se separou em 1991 abreviando o próprio nome como República Ucraniana.

É tempo de deixar de crer nos nomes e nos confins marcados nos mapas e de se perguntar sobretudo sobre o que aconteceu, o que aconteceu daquele mundo e daquelas formas de vida que acabamos de evocar. Como sobrevivem – se sobrevivem – além dos infames registros das burocracias estatais? E a guerra agora em curso não é, mais uma vez, o fruto do esquecimento daquelas formas de vida e a odiosa e letal consequência daqueles registros e daqueles nomes?

 

Giorgio Agamben,

24 de abril de 2023.

 

Original disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-guerra-galizia

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

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