
o embarque, no cais, e desde então
o mar é uma extensa e incessante
saudade salgada
o mar é uma extensa e incessante
saudade salgada
A desrealidade e ausência de mundo (que sempre diz respeito à existência de um mundo comum entre as pessoas e não apenas no sentido real, de res, ou coisal do termo) na quase totalidade dos espaços urbanos das grandes metrópoles mundiais têm seu paroxismo nos dispositivos de entretenimento e de gestão do “tempo vago” nulificado (shopping centers, salas de espetáculo, estádios de futebol e eventos massivos correlatos). Em meio à deriva automática de inúmeros zumbis absorvidos pelo consumo fácil e pelo gozo parcial sempre protraído do fetiche, os únicos indivíduos ainda em vigília são aqueles que, nestes mesmos espaços, atuam não como consumidores mas trabalhadores triplo K (termo de umas das cidade mais fantasmagóricas do mundo, Tóquio, para designar o labor kitsui, kitanai, kike, penoso, sujo e perigoso ), tendo que, não raro, manejar resíduos orgânicos como fezes, urina e vômitos, restos de comida, descarregar e carregar os mais variados objetos e ainda atender com presteza as expectativas de quem quer “se divertir”. O labor por si, vale lembrar Hannah Arendt, dá-se no isolamento e é despido de mundo. Tal condição de alienação mundana se agravaria, em tese, nestes casos. O intrigante se evidencia no fato de que tais pessoas, em sua obscuridade, são coagidas a manter uma distância abissal mas fisicamente próxima do próprio dispositivo. São alienados de mundo (como todos somos nos dias que correm) mas não compartilham da prótese específica (como no shopping), podendo analisá-la em toda sua crueza e esterilidade. Diferentemente do excluído que contempla o circo externamente e pode até pretender ser incluído (mesmo que tenha de enfrentar mecanismos de segurança e separação), tais ajudantes têm, em potência, a chave para expor a grande ficção que comanda a maquinaria e demonstrar a impossibilidade de qualquer tipo de paraíso no inferno catastroficamente asséptico do capital.
“Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade.”[1] Assim começa Walter Benjamin o texto O jogo das letras, que aparece no seu Infância em Berlim por volta de 1900. O momento do qual Benjamin sente saudades – e diz, é o que lhe causa mais saudades – é aquele de sua alfabetização, de quando brincava com os então muito comuns jogos de letras. Aprender a compor palavras, operação factual dos jogos de letras, é para a criança um momento imaginativo por excelência. Isto é, o jogo das letras se dá como uma espécie de tábua de montagem: uma série de plaquetinhas, na qual vem individualmente gravadas cada uma das letras do alfabeto, é disposta de modo que a criança possa, montando-as em sequências, aprender a ler. O gesto infantil diante das letras (todo o alfabeto que compõe o jogo de letras e que em si, tal qual apresentado à criança, não tem sentido) é o de organizá-las dando-lhes um sentido, isto é, formando palavras. É justamente disso que Benjamin tem saudade: o gesto de apreender a ler. Na saudade despertada pelo jogo das letras Benjamin pretende reencontrar sua infância na integralidade. Porém, isso nunca se dará: “... posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo.”[2]
