terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Um outro sonho



Eram quatro da manhã e eu ouvia o último vento dobrar a esquina. Junto dele, passava seu rosto desfigurado pelo meu sonho. Sua imagem, plena de vozes, acariciava meu rosto com dedos leves e, junto à minha face, sussurrava mil frases nas quais me perdia em deleites. Depois disso, foi só silêncio. As ruas, perpassadas por uma luz frágil e arredia, eram apenas o silencioso vácuo da sua voz, das nossas vozes, já que agora era eu a tentar falar. Porém, nada, nada além da intenção de falar conseguia sair de mim. E tinha ganas, e tinha ganas; agora eram ganas de escrever, e pus-me a falar à folha branca. Um verborrágico discurso mudo, apenas signos, pequenas manchas negras na celulose alva daquela folha de caderno velho. E escrevia, escrevia, mas, agoniado, só conseguia escrever sobre antes do vento, sobre a voz que há pouco tocava meu rosto com sutileza. Mas eu queria falar sobre o silêncio que veio depois, mas não, palavras para o silêncio não existiam; e pensei que era por causa da luz, aquela mesma, frágil e arredia, que nesta noite, a do último vento, ainda era a única capaz de iluminar a folha branca sobre a qual deitava letras incapazes de dizer o que eu mais queria dizer: o silêncio...

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

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