sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Castelo


- Permita-me, senhor prefeito, que eu o interompa com uma pergunta - disse K. - O senhor não fez menção, antes, a uma autoridade de controle? A administração, da maneira como o senhor descreve, é de uma natureza tal, que a pessoa se sente mal só de pensar que esse controle possa estar ausente.
- O senhor é muito severo - disse o prefeito. - Mas pode multiplicar por mil sua severidade que ela não será nada em comparação com a severidade que a administração emprega em relação a si mesma. Só uma pessoa completamente estranha pode fazer uma pergunta como a sua. Se existem autoridades de controle? Existem apenas autoridades de controle. Evidentemente elas não se destinam a descobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois não ocorrem erros, e mesmo que aconteça um, como no seu caso, quem tem o direito de dizer de forma definitiva que é um erro?
- Isso seria uma novidade completa! - exclamou K.
- Para mim é uma coisa muito antiga - disse o prefeito. - Eu mesmo estou convencido, de um modo não muito diferente do seu, de que houve um erro e de que, por causa do desespero com isso, Sordini adoeceu gravemente; as primeiras instâncias de controle, às quais devemos a descoberta da origem do erro, aqui também o reconhecem. Mas quem pode afirmar que a segunda instância julga da mesma maneira e a terceira também e assim por diante todas as demais?
- Pode ser - disse K. - Prefiro não me intrometer nessas considerações, além disso é a primeira vez que ouço falar dessas instâncias de controle e naturalmente ainda não sou capaz de entendê-las. Acredito apenas que aqui se devem distinguir duas coisas: primeiro, aquilo que acontece dentro da administração das instâncias e o que, por sua vez, pode ser concebido administrativamente, de uma maneira ou de outra; e segundo, minha pessoa real, eu, que estou fora da administração e a quem ameaça um prejuízo tão insensato por parte delas, que ainda não consigo acreditar na seriedade do perigo. Para o primeiro ponto provavelmente vale o que o senhor, prefeito, narra com um conhecimento de causa espantoso, extraordinário, mas agora eu gostaria de ouvir também uma palavra a meu respeito.
- Chego também a isso - disse o prefeito. - Mas o senhor não poderia entender se eu não antecipasse ainda alguma coisa. Já o fato de eu mencionar neste momento as instâncias de controle foi prematuro. Volto portanto às divergências com Sordini. Como dizia, a mínima vantagem sobre alguém, ele já venceu, pois aí se intensificam sua atenção, sua energia, sua presença de espírito, e para a pessoa atacada é uma visão terrível e para os inimigos dela uma visão estupenda. Só posso falar dele assim como estou fazendo porque em outros casos também experimentei isso. Aliás, até agora nunca conseguî vê-lo com meus próprios olhos, ele não pode vir aqui para baixo, está muito sobrecarregado de trabalho, sua sala, conforme me descreveram, tem todas as paredes cobertas por colunas de processos volumosos empilhados uns sobre os outros, são apenas aqueles nos quais Sordini está trabalhando no momento, e uma vez que das pilhas são constantemente retirados processos e juntados novos documentos, tudo na maior pressa, as pilhas desmoronam e é justamente esse estrondo que se repete sem cessar que se tornou característico do escritório de Sordini. Sim, Sordini é um grande trabalhador e dedica o mesmo cuidado tanto ao menor como ao maior dos casos.

(Franz Kafka. O Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Tradução: Modesto Carone. pp. 102-104.)


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