O peso de uma caneca cheia de café com leite era equivalente ao peso de minha vida naquele instante. Figuras das mais diversas manhãs invernais: encasacados, perambulando por algumas ruas de mais uma das cidades planejadas pelos ingleses que cá estiveram. Tempos – muito depois dos ingleses – em que galhos no portão sinalizavam a presença daquele café com leite, de umas bolachinhas e de umas boas horas de conversa e risadas à toa, assim, pelo simples fato de rir. Galhos que às vezes traziam também algumas preocupações, aquelas contumazes, mas que sempre vinham de maneira diferente. Um caminhar lento e despretensioso, com muito sentido, não uma direção, mas as mesmas direções com muito sentido. E um café com leite na canequinha de louça, aquela, a do dia a dia, a de sempre. O gosto era mais especial, aliás, tão bom quanto esse era só a sensação de água fresca do filtro de barro na caneca de alumínio. Nesse filtro uma toalhinha com bordados de crochê tampava a marca “São João”. E o crochê estava por tudo: pelo chão da casinha nº2, em tapetes que a enfeitavam; nas camas, as colchas; nas janelas, as cortinas. Recentemente o crochê se tornara mais difícil, talvez pelos nozinhos dos dedos, bem mais grossos do que as falanges, que, acho, às vezes deviam doer (aquela silenciosa dor). Agora eram os aventais com passarinhos: proteção para os peitos e para os peitos que naqueles peitos mamaram. Na sala, os papeis desordenados, uma bagunça de contas de água, luz e telefone anotadas com uma caligrafia torta e desenhada. Números que às vezes pareciam pontas de narizes de rostos por desenhar, ou, talvez, a ponta de uma orelha? Não sei, não sei... eram porventura também fruto daqueles nozinhos dos dedos, que possivelmente dificultavam a escrita daquelas mãos com tão pouca habilidade nessas histórias de papel e caneta. Mas pra que tantos números e tanta correição se a vida estava lá fora, nas cadeiras de varanda, nos rostos felizes e sorridentes do pessoal que ali todos os dias se reunia, assim, para rir à toa? Vida reunida num só ventre, de um só ventre. Aquela vida, porém, que, como a minha, agora pesava justamente uma caneca de café com leite, nada exigia. Os dias, as tardes, passavam tão de pressa que aquele frequente “é cedo Tuta” soava sempre frágil e esperançoso, como que a desejar a tarde seguinte, e a seguinte, e a seguinte... Desejo estampado nos olhos e no sorriso maroto, pronto para suportar o cheiro e a força da solução do sal amoníaco em água, mistura imprescindível pro gosto daquelas tardes. Desejo de um ser qualquer, qual-quer... Quodlibet ens est unum, verum, bonum. E talvez os transcendentais a ela se aplicassem em demasia... E neste instante o café com leite na caneca de louça se equivale ao meu ser e se rarefaz na minha historicidade, esta, das tardes de sol com cadeiras de varanda com risos incandescentes, dos assombros sempre previsíveis diante de pequenos incidentes, dos passos lentos e compassados pelas calçadas das ruas planejadas, dos galhos enfiados em meio às grades dos portões e das rosas que me cobriam nas noites que dormia fora e me esquecia do cobertor...
quase 27 de fevereiro de 2010... Vini
Nossa Vini to chorando demais agora..que texto lindo nossa! em nenhum momento vc diz o nome da nossa querida mas só pelos gestos ela é reconhecida! pra sempre em nossos corações. SEMPRE! o crochê, os nozinhso nos dedos, as bolachinhas e os galhinhos na porta..aaaah os galhinhos verdes!
ResponderExcluirmuito triste, muito...será pra sempre o meu, o seu, o nosso exemplo!
e que nós mantenhamos a união que ela sempre manteve!
Lindo
ExcluirSobre o fogão os passarinhos bordados no pano de louça que, claro, não tenho coragem de usar tamanha a delicadeza.
ResponderExcluirDelicadeza. Reconheci-a rapidamente na presença dela. Aquela delicadeza com a qual compartilho os meus dias.
Para todos, uma cobertinha. Para todos, bolachinhas, bordados e mimos. Para todos.
Ah, ter escutado, na varanda, os risos todos desses todos que desse ventre vieram! Privilégio.
Caligrafia torta e desenhada, como é a vida com realidade e intenção.
"É cedo vó".
Nesta manhã gelada, um vento que dói tanto quanto a dor da saudade, senti o soar da máquina de costura com uma luz fraca pendurada na parede e uma voz que cantarolava na minha infância "fiz a cama na varada, me esqueci do cobertor, deu um vento na roseira, me cobriu toda de flor..."
ResponderExcluirUma bela homenagem.
ResponderExcluirEm um dia de isolamento social. Isolada ainda mais no meu quarto. Ler delicadezas assim, é como um bálsamo na ferida desses dias difícil.Bons sentimentos me invadiram.
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