quarta-feira, 17 de março de 2010

Desertar


A pena do degredo sempre foi uma das mais severas na história do direito penal. Desterrado é aquele que, como sanção a seus atos, foi excluído da comunidade dos homens, tendo que conviver com as bestas no puro mundo da physis, além das muralhas protegidas da cidade. O equivalente espontâneo do desterro é a deserção. Desertar é ousar por conta própria enfrentar a solidão dos desertos. O gesto de insana lucidez do Timão de Atenas shakespeariano. Deserção de um rebanho, de uma facção, de uma versão compartilhada, de uma forma de vida genericamente aceita. A má-fé e a casca de virtudes da burguesia mantém uma completa ojeriza à deserção. A deserção é o mais perfeito desceuvrement. Ah quem tivesse a força para desertar deveras! Já dizia um inspirado Álvaro de Campos. O mundo dos dispositivos disseminados e hipertrofiados - que fazem com a que vida humana seja tão-somente sobrevida mantida por intermédio de aparelhos e antidepressivos - impõe-nos duas alternativas básicas e inconciliáveis: ser um canalha ou ser um desertor. Esta, a opção dos raros.



(Escrito em um momento de leninismo ou stalinismo de uma negatividade jogada contra si mesma, seja lá o que isso queira significar.)

Imagem: Abbas. México. Magnum photos. Província de Guerreiro, Vila de Santo Agostinho. 1985.

4 comentários:

  1. Ouço Nietzsche:

    "Ouve-se sempre nos escritos de um ermitão algo também do eco do ermo, algo do tom sussurado e da arisca circunpescção da solidão; em suas palavras mais fortes, mesmo em seu grito, soa ainda uma nova e mais perigosa espécie de calar, de silenciar. Quem, entra ano, sai ano, e de dia e de noite, sentou-se a sós com sua alma em confidencial duelo e diálogo, quem em sua caverna – pode ser um labirinto, mas também uma jazida de ouro – se tornou urso de cavernas ou cavador ou vigia de tesouro e dragão: seus próprios conceitos acabam por conter uma cor própria de lusco-fusco, um odor de profundeza como de mofo, algo de incomunicável e renitente, que sopra frio em todo aquele que passa. O ermitão não acredita que um filósofo – suposto que um filósofo sempre foi primeiro um ermitão – tenha jamais expresso suas próprias e últimas opiniões em livros: não se escrevem livros , precisamente, para resguardar o que se guarda em si? – ele até duvidará se um filósofo pode, em geral, ter opiniões "últimas e próprias", se nele, por trás de cada caverna, não jaz, não tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto, mais alheio, mais rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de cada "fundamento". Cada filosofia é uma filosofia de fachada – eis um juízo ermitão: "Há algo de arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada – há também algo de desconfiado nisso."
    Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara."

    (NIETZSCHE, Friedrich. Para além de bem e mal - prelúdio de uma filosofia do porvir. in: NIETZSCHE, F. Obras incompletas. (Trad. Rubens R. Torres Filho). São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 336)


    Ouço Brecht:

    "Famílias, quando lhes nascer um filho
    Façam votos de que seja inteligente.
    Eu, que pela inteligência
    arruinei minha vida
    posso apenas desejar
    que meu filho se revele
    parvo e tacanho.
    Assim terá a vida tranqüila
    como ministro do governo."

    (BRECHT, Bertolt. Poemas (1913-1956). (Sel. e trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 190).

    Enquanto insistimos nessa maçada de Larry Gopnik que se perpetua desperpetuando-se, nos restará o lamento de Àlvaro de Campos "Ah, quem tivesse a força para desertar deveras!".

    Compartilho do grito! Despropositado o parêntese explicativo, praticamente nega o próprio texto... ou o explica.

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  2. Grande Marechal Caraíba Panapaná: por detrás dos Larrys Gopnik que temos de assumir nesta vida entre os "vãos da plataforma" ainda resta(m) o(s) grito(s) (de urutau desesperado ou simplesmente triste!). Ainda há muitas madrugadas pra tecer e o jalapão é aqui ao lado! Obrigado pelas pérolas! Grande abraço.

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  3. Volte a escrever, meu caro. Agora, apenas como amiga, posso me deleitar mais, desprovida de... Você sabe o quê.

    Bom vomitarmos, de vez em quando, ou corremos risco de explosão.

    ps: tem gente que deveria reler a postagem, não? encarar como um conselho, se é que você me entende.

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  4. Gracias pela contribuição, cara Floema. Voltarei sim... lhe prometo.

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