terça-feira, 28 de junho de 2011

Nota sobre o espaço (II)

"Na época da alienação máxima dos homens entre si, das relações infinitamente mediatizadas - enfim, as únicas que eles têm -, inventou-se o filme e o gramofone. No filme o homem não reconhece o seu próprio andar, no gramofone não reconhece sua própria voz."
(Walter Benjamin. A Modernidade e os Modernos. p. 103)


A velocidade é um dos mitos mais drásticos do presente. Ou seja, a ficção do ultrapassamento técnico do espaço. Se ele ocorre, só se dá em planos de metafísica projetada, simulações concretas com efeitos ontológicos devastadores.

Exemplos: há a comunicação direta e barateada, na velocidade virtual dos sinais eletrônicos... Em contrapartida, a produção de sedentarizados (que não precisam se locomover bastante ou frequentar academias para deixar desta condição), do lixo informativo, da compulsão por pequenas máquinas cada vez mais desreais e da dependência de milhões a um pequeno número de corporações que controlam a nuvem informática - estas, em locais geograficamente situados e muito bem sitiados. Há a massificação automobilística, viagens aéreas facilitadas, rapidez inaudita nos deslocamentos terrestres, mas boa parte da terra está transformada num mero local desértico de passagem... Ou num grande estacionamento a céu aberto.

Ocupamos espaço, somos espaço. Mesmo um cadáver não pode ser eliminado sem grandes dificuldades. As próteses de velocidade, para serem efetivas, têm de gerar dispositivos que "descartam" a geografia - com toda a dimensão de historicidade espacial e antropológica que este termo comporta - para gerar estranhas replicações (como o estacionamento, a fumaça, a auto-estrada, a usina hidroelétrica ou nuclear, o condomínio fechado, o monumento turístico, etc., etc.)

Não há, porém, uma teleologia da técnica, algo como uma escatologia automática livre da contingência. É de uma mistificação teológica que se retira o argumento de que o "capitalismo" (ou outra denominação que possa ser dada à forma de vida que se disseminou globalmente nos últimos dois séculos) só será vencido por uma catástrofe ambiental sem precedentes, por mais que seja óbvio que uma mera defasagem energética simplesmente poderia colapsar toda a "sociedade da informação" hoje triunfante. Embutido neste raciocínio está a imagem de um processo inexorável como o destino, um argumento que lembra alguns silogismos da velha escolástica - se substituirmos o termo "capitalismo" por "divina providência" ou outro efeito de mística qualquer.

A questão não é apenas que o mundo está se tornando difícil de se habitar (e, vertigem!, a condição humana está inapelavelmente presa a este único mundo existente), simplesmente estamos perdendo a experiência da habitação, já não sabemos o que é habitar.

Aqui é preciso apelar para a barbárie. Se entendermos como bárbaro aquele que ainda está na chamada esfera do "pré-tecnológico", do "pré-moderno" (e todas estas denominações não deixam de estar inseridas numa visão fantasiosa, tele-teológica da própria história - além de ser impossível desvencilhar o processo de hominização da técnica enquanto tal) ou aquele que se "subjetiva" enquanto descarte inevitável do modo de vida imperante. O índio, o cigano, o camponês, o malaco da periferia, os nômades, os hucks finn's do vasto mundo das esquinas e quebradas. Como dizia Bolaño, não aqueles personagens melvilleanos que correm atrás de baleias épicas, ou os revolucionários de facebook, mas aquele que pesca bagres no Mississipi e sabe ler os rastros de um animal no meio da mata- sabe habitar e fazer experiência do rio, de uma estepe, do chão de barro de uma periferia. Não terá qualquer vestígio nos anais imprevisíveis da história, imerso no mito e na vida real feita de sangue, suor e lágrimas.

Sem as mitificações do bom selvagem ou do humanismo de esquerda mais romântico, sim, um sujeito que pode muito bem conviver com a selvageria - nunca estivemos separados da natureza imponderável e violenta, nem você, meu caro leitor de blog, nós, habitantes da vida administrada até as entranhas.

Talvez esta seja uma das últimas resistências ainda possíveis. A vida destes homens e mulheres está sendo posta em xeque com os "efeitos espaciais colaterais" das "próteses da velocidade".

Do ferro do séc. XIX, ao plástico do séc. XX, o séc. XXI é de plasma, a reestruturação da produção, a financeirização virtual do capital (emblemática na proliferação dos caixas eletrônicos e transações virtuais) põe estas formas de vida numa rota fatal de colisão.

Barbárie ou catástrofe, estes são os pólos de luta que restam no campo do presente.

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