Na passagem do século XIX para o XX as cidades, principalmente as metrópoles dos países em que a industrialização já havia feito seus primeiros ciclos, começam a sentir uma mudança em seus ritmos internos: as distâncias começam a se alargar (e aí a necessidade de "meios de transporte" mais velozes); os ruídos aumentam (é o motor de combustão interna); a sujeira não é mais somente rejeito humano, mas também dejetos das máquinas; os estimulantes ganham espaço nos espaços públicos (não eram mais o charuto e o chá a servir de momento de relaxamento nas horas de descanso, mas o cigarro e o café usados em plena jornada de trabalho); o ritmo interno à cidade passou a ser ligado não mais à circulação sanguínea, mas àquela do petróleo refinado nas engrenagens das máquinas.
Uma mecanização também atinge o campo artístico (e muito já se escreveu sobre isso), como no caso da invenção da fotografia: os retratos que, quando pintados, tomavam horas de pose do retratado, passaram a ser capturados - instantaneamente (se bem que nos primórdios da fotografia não fosse assim tão rápido) - pela objetiva da máquina fotográfica; logo em seguida a invenção do cinema dá mostras do que seria a nova velocidade no acompanhamento de "histórias" (os romances entram em declínio e o entretenimento passa para a grande tela); a arquitetura passa a privilegiar os espaços internos dos ambientes, quase que em detrimento do aspecto exterior, além da preocupação com os novos mecanismos (luz elétrica, telefone etc.) que começariam a tomar um espaço e ser o centro das atenções dos arquitetos (de fato, era burguesia industrial a comitente dos projetos). Até mesmo as religiões sofrem com a intervenção das máquinas. Exemplo disso é a criação do espiritismo, centrado nas reuniões de caráter privado e em "assombrações" possibilitadas pela nova forma de manipular a energia (luzes, aparelhos magnéticos, enfim, uma série de forças que poderiam servir - subterraneamente - de meio de conversão e convencimento de crentes).
Hoje toda essa mudança súbita (mais ou menos cem anos) pode ser vista como marca do início de uma mutação antropológica. Todo esse contexto das metrópoles da Europa e América do Norte do século XX - explosão demográfica, guerras virulentas, energia atômica etc. - pode, no entanto, ser redimensionado numa simples caminhada dominical numa cidade interiorana de um país interiorano. É óbvio que o ritmo das máquinas chega aqui com um tempo de atraso - e toda essa história da passagem do século XIX para o XX no hemisfério norte pode ser repensada com relação ao Brasil.
Hoje enquanto andava me dei conta de que o que há 15 anos era um espaço arborizado, voltado à convivência de senhoras com seus netos, de senhores com seus jogos de dama e dominó, onde ainda se podia ouvir alguns pássaros a cantar, hoje é um estacionamento. Foi passando por ali hoje que senti que o ritmo das tardes de café - que ainda hoje insistimos em manter - é ameaçado a todo instante não diretamente por alguém (ou algumas pessoas que a isso se opõem sem o saber), mas por uma ideia, por um modo de acolher as ingerências do poder (seja na submissão a todo mecanismo de controle demográfico, seja na aceitação redentorista da tecnologia como "meio libertador" de não se sabe qual sensação vital); e é essa aceitação tácita e muda de um modo de vida pautado na velocidade das máquinas que paira como ameaça constante a um ritmo de vida.
Não tenho pretensões de análise da mutação, nem de levantamento de dados que confirmem essa minha estranha sensação de não conseguir sentir um ritmo humano nas coisas da cidade (e não falo de uma metrópole!). Também seria ingenuidade pensar em espaços resguardados da movimentação e aceleração mecânica (isso pra não falar da muito mais intensa e rápida evolução das novas tecnologias). Apenas escrevo uma sensação que tive, um enjoo quase literal enquanto passeava. Olhando para as ruas, para os carros, parece-me que hoje tudo o que se move o faz num ritmo que busca um movimento não oscilante - no qual é possível haver baixas e altas velocidades a depender do momento -, mas uma constante; a cidade, na ânsia por aceleração de seu ritmo, perde-o, pois não há ritmo onde há somente linearidade, onde há movimento constante e inalterado. O ritmo da máquina não é propriamente um ritmo, pois não há ritmo onde não há sensação, onde não há, por assim dizer, vida. E talvez seja essa minha vontade de sentir ritmos antigos que me ilude diante da arritmia do mundo contemporâneo.
Diz-se que vivemos um ritmo frenético (e eu mesmo já disse que o ritmo da vida muda com as revoluções tecnológicas - aliás, uso aqui o significante ritmo indistintamente), mas acho que é todo um novo cabedal onomástico que precisa ser elaborado para, talvez, dar conta disso que chamamos era da globalização. De fato, toda essa minha elucubração surgiu de uma sensação em meio a uma caminhada ritmada. Aliás, durante essa hora em que me coloquei a andar nas esquadrinhadas ruas desta cidade interiorana, tentei ouvir certos sons. Queria escutar os sons da cidade, seu "ritmo", que talvez pudesse estar no canto dos pássaros, no vento frio que agitava as folhas das árvores, no som dos meus passos que ora soavam secos, ora umedecidos pela neblina. Queria ver e ouvir a cidade como espaço no qual habitam homens, no qual há vida. Porém, entristeci-me um pouco naqueles momentos. Era como se a minha sensação estivesse viciada em querer encontrar sentidos nos sons (será, Derrida?!), era como se me fosse interdito o acesso às outras pessoas: como fazer com que minhas angustias, meus sentidos, entrassem em relação (rítmica) com as dos outros? Como se já não vejo com quem o fazer? A cidade está esvaziada... ou, talvez, seja o meu ritmo que colapsa por não encontrar sua melodia, por tentar decifrar no espaço o que só se dá no tempo. E, talvez, seja mesmo o ritmo o tempo organizado. Mas o que é a organização senão o edifício que se constrói sobre a desorganização?
Tudo um delírio dominical? Acho que sim, mas ritmado.
Imagem: Leonard Freed. West Germany, Sunday. 1965.
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