Caro Professor Kerényi,
agora que a sua visita a Turim e o nosso encontro apenas aconteceu, não quero tardar em manifestar-lhe toda a alegria de o ter tido aqui e de ter podido passear com o senhor pelas mesmas ruas que percorria quando menino, quando os livros de Kerényi me iniciavam à ciência das religiões e do mito. O Museu Egípcio foi o lugar em que pela primeira vez conheci o rosto do passado, e não poderia chamar apenas "acaso" a sorte que tive em reencontrar-me naquele lugar juntamente ao meu mestre, que me ensinou a reconhecer nas aparências vivas do passado a promessa de uma "cura" profunda.
As razões do pensamento humano são sempre secretas e as conclusões nascem de longas metamorfoses que, por toda sua duração, deixam-nos "aterrorizados e temorizados". No instante em que me sentia mais fraco para reagir contra o mito "não genuíno", deformado através da lente do demonismo, estava na realidade mais próximo do início da "cura": no instante em que o demônio não teria mais aparecido para mim como parte integrante do deus. Mas a consciência dessa "cura" tive somente quando o senhor, diante do quadro pintado por Appiani[1], disse-me: "Esta é mitologia genuína. E não há demônios". Também o raptor de Kore, como o senhor me fez notar, era um deus[2].
Mesmo que possam parecer retóricas – mas não acredito que assim pareçam para o senhor –, as suas palavras diante daquelas pinturas e também as que o senhor me disse sobre Thomas Mann e as “Flores”[3], revelaram-me o que já dentro de mim estava acontecendo, isto é, que o mito – o mito genuíno – não é a essência do bem e do mal afrontados e conjuntos, mas “um ponto mais no alto”, no qual o demônio não pode existir, já que o demônio pode estar somente dentro de nós, como um trágico “erro de visão” ou como uma força para ser vencida, que jaz no nosso olhar: não no horizonte da realidade.
Compreendo claramente que não me exprimo nesta circunstância com a necessária clareza; mas estou certo de que o senhor compreenderá e acolherá – não somente como ato formal – o meu reconhecimento. Se hoje posso afrontar com uma serenidade conquistada pela primeira vez a realidade da vida e do ser é graças ao seu ensinamento, o qual não se retirou de mim nem mesmo quando o meu pensamento, ainda distante da “cura”, contrastava com as suas certezas.
Agora o senhor se prepara para lembrar os noventa anos do nascimento de Thomas Mann, o qual também foi meu guia tão profundo que às vezes não soube compreendê-lo e pertenci ao grupo dos seus mal-entendedores. Ao senhor devo também isto: ter voltado a ler Thomas Mann com ânimo mudado, disposto a nele acolher o ensinamento e não a deformar-lhe, por ignorância e “doença”, as palavras.
Quando o senhor tomar a palavra em Zurique contará certamente com a aprovação de tantos, vivos ou já desaparecidos, fiéis àquele grande espírito. Por pouca e pouco insignificante que seja a minha devoção, diante daquela de tantos “iluminados”, queira crer neste instante, caro professor, também na adesão do meu espírito “curado”; e sempre me tenha, juntamente com sua esposa,
do seu,
Furio Jesi.
p.s.: Um pedido, talvez um tanto desenvolto: poderia ter, caro professor, uma fotografia sua para conservar entre as lembranças mais caras da minha devoção por aquilo em que o senhor crê? Ser-lhe-ei muitíssimo grato.
[1] As pinturas de Albani (não Appiani) representam os quatro elementos. [O nome é corrigido a mão no rascunho conservado entre as cartas de Jesi].
[2] Cfr. F. Jesi, K. Kerényi – I pensieri segreti del mitologo, em Materiali mitologici, Einaudi, Torino, 1979, pp. 12. sgg.: “No fim de maio de 1965 estava junto com Kerényi na Pinacoteca Sabauda de Turim. Kerényi parou longamente diante dos quadros mitológicos de Francesco Albani; olhava, então, como lhe era de costume e tomava rápidas e densas notas numa caderneta. Parou especialmente diante de O rapto de Proserpina. Perguntava-me e, sobretudo, perguntava-lhe como ele se colocava diante de uma evocação de tonalidade extremamente serena da irrupção ‘demoníaca’ da potência ínfera por excelência. A resposta de Kerényi vem rápida, como se fosse para uma pergunta óbvia: ‘Hades não era um demônio, mas um deus’”. Na sequência, Jesi cita várias passagens da carta de Kerényi de 25 de maio de 1965 que documentam a opinião de Kerényi sobre a diferença entre o que no mito é demoníaco e o que é divino.
[3] Alusão ao texto do discurso pelos noventa anos de Thomas Mann que Kerényi estava escrevendo exatamente durante a visita a Turim e que se inspira no drama Fiorenza de Thomas Mann.
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