terça-feira, 13 de setembro de 2011

Parágrafo sobre a queda


Pensei que talvez pudesse escrever poesias. No abismo febril das impressões e do cotidiano, nesta cidade que é um deserto de amontoados de solidões, talvez a única saída para conseguir viver sem a ilusão de que estamos em ascensão, ao invés de em franca queda no abismo, seja buscar a etimologia dos sentimentos, isto é, como falou Pasternak, fazer poesia. Mas será que conseguimos apreender por meio de um discurso (logos) algo de real (ètymon) das palavras (estas que são, digamos, a matéria indissociável do discurso)? Mesmo que, ou, ainda que, tal discurso se diga poético, como isso é possível? Desde nossa entrada na existência começamos a não existir. É a dubiedade, é a separação brusca que nos tinge com as cores das coisas que achamos que são e daquelas que dizemos que são, o que no fundo é a mesma coisa. Se existimos já na queda no não existir, como ainda queremos ser? Como queremos subir o abismo se todo o peso na existência nos carrega para seu fundo - também ele, o fundo, inexistente? A marcha da história não encontra seu ritmo numa composição de passos que tentam escalar o abismo em conjunto - esse puro mito -, nem nas impressões dadas por aquilo que pensamos real e existente; tampouco nos rostos introspectivos dos outros que passam por nós como bolhas de sabão que a qualquer momento estalarão e, no máximo, deixarão suas pequenas gotículas como herança - que, tão logo herdada, evapora. A marcha é uma queda que pretende nos manter solitários uns aos outros. Porém, ainda é possível contar com outros decadentes, com outros corpos que descem e que também têm suas suspeitas de que é preciso tentar olhar para o movimento da queda encarando a dubiedade do nosso falimento. Não se trata de viver uma derrota, nem de choramingar uma vitória que poderia ter sido; também não é uma entrega à melancolia da espera pelo fim (e da perda de um estado prístino ideal), mas, minimamente, um tentar encarar a queda sabendo que é nela que nossos possíveis se dão, que nossos outros nos aparecem e que o real e o discurso não passam de uma hipótese poética.


Imagem: Hieronymus Bosch. Inferno: a queda dos danados. 1500-1504, Palazzo Ducale, Venezia.

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