sexta-feira, 30 de maio de 2014
Um poema
Cheiro de mijo e suor
cidade inundada,
ensolarada.
Correm soltos desvarios,
aplacam ventos
os sopros de pulmões cansados.
Vago ao redor de mim mesmo
tentando fugir da fedentina;
mas ela em mim se impregna
e me corrói a carne.
Corro os olhos ao longe
e a vejo soletrando verbos defectivos.
Olhar matreiro,
como quem dança ébrio de sonhos.
Apenas pisco e ela se foi;
tomou o mesmo rumo da cidade,
que, infestada de gente, desce
o rio dos mortos.
Cheiro de mijo e suor,
cidade inundada de ausências.
A dureza dos esbarrões
e mais nenhuma imagem,
nenhum verbo, nenhuma palavra.
Ela já está no rio,
viva, porém.
Vai na galera dos loucos,
dos desavisados, dos destraídos,
daqueles que jamais souberam amar,
que nunca sentiram o cheiro de
mijo e suor,
talvez, a única forma da cidade.
Imagem: Blu.
segunda-feira, 26 de maio de 2014
Montagens de Murilo
"A poesia somos todos nós": assim o poeta termina suas metamorfoses, diante do abismo da iniciação. A arte do tempo, os ciclones de flores e o sorriso da musa. O poeta parte pela vida, parte a vida, desdobra-se à beira-mar. Imberbe, matreiro, joga raciocínios ao léu e planta a vida no poema. Todo mundo é enigma e a eternidade deve ser historiada por quem frequenta o labirinto onde se representa diariamente a pantomima cósmica. Já estamos livres da metáfora e dos mitos: não restam senão bibliotecas ambulantes já esvaziadas de livros. Mas ainda somos poetas e isso nos dá acesso à linguagem dos deuses, para além do espaço e do tempo, essas categorias anacrônicas que o homem deverá abstrair se quiser conquistar a poesia da vida. E continuamos vagando - com o pensamento em férias nos sonhos - pelo vasto signo concreto que se move e é apenas medido pelo espírito: o universo. A lira continua soando, o espaço-tempo se prostra diante das palavras, um indubitável som que preenche a vida numa imagem plural desenhada na cidade eterna: Orfeu Orftu Orfele Orfnós Orfvós Orfeles.
quarta-feira, 21 de maio de 2014
O homem e sua dor
Comentário de um grande desenho feito em Rodez e dado ao doutor Jacques Latrémolière como agradecimento por seus eletrochoques.
As doutrinas hindus sobre o yoga da respiração são falsas.
Nós temos nas costas vértebras plenas, perfuradas pelo prego da dor e que, com o caminhar, o esforço dos pés para se levantarem, a resistência ao abandono, fazem, encaixando-se umas nas outras, caixas que melhor nos informam sobre nós mesmos do que todas as pesquisas metafísicas ou metapsíquicas sobre o princípio da vida.
Resistir em seu corpo tal como ele é, sem jamais procurar conhecê-lo por outra coisa do que sua vontade de resistência cotidiana a todos os abandonos diante do esforço de fazer e que a vida cotidiana demanda, é, com efeito, tudo o que o homem pode e deve fazer sem jamais se autorizar a interrogar a transcendência do sopro ou do espírito, pois, de fato, ele não existe.
E o prego de uma dor dentária,
o golpe do martelo numa queda acidental sobre um osso,
dizendo mais sobre as trevas do inconsciente do que todas as buscas do yoga.
É tudo o que quis exprimir pelo desenho em que vemos um homem caminhando e que arrasta atrás de si sua dor como a velha fosforescência dentária do cisto das penas cariadas.
E seu abdômen é o torno diante dele apertado por todas as cólicas de seus pregos.
Já as sofreu todas?
Não, mas mesmo a morte não saberia pará-lo.
E ele passará nos seus próprios passos de sombra,
imagens de todos os pesos de carne às suas coxas musculosas ligados.
Antonin Artaud. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 1260. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Antonin Artaud. L'homme et sa douleur. abril de 1946.
domingo, 18 de maio de 2014
Pequeno delírio em parágrafo XIX
Fecho os olhos e vejo, com o fundo preto, esboços de rosas vermelhas. Suas pétalas aveludadas como que tocam a escuridão das imagens. Meu estômago se agita triturando palavras não ditas. É a doce ilusão dos sonhos, é a voracidade feita pedra. Absorto com as rosas, sinto a escuridão que me invade. Tomado de cólera, regurgito as palavras e dou mostras da ausência que tudo preenche. Nem mesmo Drummond seria capaz de dizer palavra. A ideia da rosa? Palavra vã, poema torto, e o toque de veludo apaga-se na escuridão. O elixir açucarado que há pouco ingeria dissolve-se em palavras vazias. Não há senão palavrório saltitando aos borbotões. Nenhuma ideia da rosa, apenas um sopro nos olhos desavisados. No poema faz-se a vida. Torta, enviesada, mas que resplandece em um sorriso...
Imagem: Goya. Jogo de cabra-cega. 1788-1789. Museu do Prado, Madri.
quinta-feira, 8 de maio de 2014
Pequeno parágrafo sobre a escuridão
Abraçar o véu da noite horas a fio e nenhum vazio da escuridão poderia ser mais cheio. Talvez fossem os mesmos pássaros noturnos que, com seu canto obscuro, assombravam Murilo Mendes ao anunciar uma vida livre cujo segredo escapa aos nossos ouvidos. Resquícios da mente ébria, dos espectros que se avolumavam nos retratos não tirados, nas memórias desgastadas, no presente jogado sobre a cama ao lado. Silêncio e Francis Ponge riscado pelo poeta que o lê: "as opiniões mais bem fundadas, os sistemas filosóficos mais harmoniosos (os mais bem constituídos), sempre me parecerem absolutamente frágeis, causaram certa náusea, melancolia, um sentimento doloroso de inconsistência." Aprofunda-se, ainda mais, a noite. Um poema em prosa? Talvez apenas a vida que acena à escuridão, à sensação mais absoluta de desesperança, como que a dizer que já é impossível pintar, seja em mapas ou em cartas, qualquer traço de seu rosto. Mas, talvez, ainda cantam os pássaros passando com seus rasantes a desafiar a morte; ou talvez tenha sido o anjo que se esqueceu de pintar minha porta com o sangue do cordeiro; tudo e nada, vértice ou vórtice, delírio e amor, clareza ou escuridão.
Imagem: Foto de uma página do exemplar de Le Grand Recueil. Méthodes, de Francis Ponge, que pertencia a Murilo Mendes.
segunda-feira, 5 de maio de 2014
Pequeno parágrafo sem sentido
Na incomensurável ansiedade, deitado, folhando uns contos de Calvino, li: "toda vez que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante." O lampejo agudo da finitude, num vislumbre do caos e do sem sentido da vida, me lançava, tal como a personagem do conto, ao instante da perdição. "Há esperança, mas não para nós", supostamente diz Kafka a Janouch. Para mim, todo o vazio que saltava aos olhos nesse momento de fragilidade, de exposição, dizia menos respeito à sensação em si - a esse saber, quase sem palavras, sobre o absurdo do mundo - do que ao deserto que se abria em meu interior, um deserto onde, bem em seu centro, de um vulcão jorrava lava em abundância. Agora, neste teclado - o grande amontado de sem-sentidos que são as letras - o toque dos dedos, quase adormecidos pela droga, apenas parece querer desenhar, numa foto desfocada, as improváveis fábulas que fazem o tecido da minha vida. Mundus est fabula, e falar - o verbo que talvez hoje seja quase impossível à boa parte dos viventes que supostamente possuem a linguagem -, fabular, me entrega aos meus algozes mais temidos, aqueles que, no meu íntimo, batem as estacas da finitude em meu peito. Nenhum sonho é mais possível, só sufoco; enterram-me à luz do dia, sem cerimônia, na agonia que destroça a carne, no mausoléu da vida nos tempos da banalidade da normalidade. Tudo sangra, em mim, tudo sangra. Só me resta o deserto onde nem mesmo a voz do batista, clamando, é capaz de fazer qualquer sentido. Espaços abertos, espinhos das rosas negras, lava que apaga a fábula do mundo, e só um silêncio ensurdecedor a me deixar, em abandono, à margem da vida, à margem da história, nos confins de mim mesmo...
Imagem: Max Ernst. Mundus est fabula. 1959.
sábado, 3 de maio de 2014
Pequeno parágrafo sobre a vida nova
Do livro da memória pouco se sabe. Por ele corremos os dedos ansiosos por encontrar, tal qual um nome numa agenda, o momento no qual, agora, pensamos termos sido felizes. O movimento, a busca, a ininterrupta vontade de ter à mão a matéria da felicidade. Tudo isso, como uma aparente fonte inesgotável de sentido, nos amarra num jogo em que, de antemão, sabemos ser perdedores. A corrida aos lugares frios em dias quentes, aos lugares quentes em dias frios, tudo como se a fuga pelas páginas do tal livro fosse a possibilidade de uma vida nova (e não é do livro da memória que Dante tira a matéria para contar sua Vita nuova?). Mas ao nos darmos conta dos borrões, que estão por toda parte no livro, surge o medo de apagá-los, da perda de matéria da vida. Um sentimento profundo, um calafrio que nos imobiliza, que nos cala. As páginas do livro se agigantam, parecem nos deglutir. À volta, tudo parece espaço em branco, página vazia. Não há mais como preenchê-las. Meus lápis estão com as pontas grossas e já não consigo escrever, nem mesmo os versos que poderiam ser arremedos da vida de outrora. A vida não é nova, mas envereda pelos mesmos velhos corredores com cheiro de bolor e em cujas paredes ainda gostaria de ver as fotos de tempos que poderiam estar no livro. A vida não é nova, mas sempre o mesmo e antigo jogo de espelhos e ecos, nada mais do que o íntimo encontro de Narciso e Eco.
Imagem: Nicolas Poussin. Eco e Narciso. 1628-30. Museu do Louvre, Paris.