terça-feira, 1 de outubro de 2024

O fim do judaísmo - Giorgio Agamben



Giorgio Agamben



Não se entende o sentido do que hoje está acontecendo em Israel se não se compreende que o sionismo constitui uma dupla negação da realidade história do judaísmo. Isto é, uma vez que transfere aos judeus o Estado-nação dos cristãos, o sionismo não apenas representa o ápice do processo de assimilação que, a partir do fim do século XVIII, foi progressivamente apagando a identidade judaica. Decisivo é que, como mostrou Amnon Raz-Krakotzikin num estudo exemplar, o que fundamenta a consciência sionista é outra negação, a negação da Galut, isto é, do exílio como princípio comum a todas a formas históricas do judaísmo como nós o conhecemos. As premissas da concepção do exílio são anteriores à destruição do Segundo Templo e já estão presentes na literatura bíblica. O exílio é a própria forma da existência dos judeus na terra e toda a tradição judaica, da Mishná ao Talmud, da arquitetura da sinagoga à memória dos eventos bíblicos, foi concebida e vivida na perspectiva do exílio. Para um judeu ortodoxo, também os judeus que vivem no estado de Israel estão em exílio. E o Estado, que os judeus esperavam com o advento do Messias, segundo a Torá não tem nada a ver com um estado nacional moderno, tanto que em seu centro estão, justamente, a reconstrução do Templo e a restauração dos sacrifícios, acerca dos quais o estado de Israel não quer nem mesmo ouvir falar. E é importante não nos esquecermos de que o exílio, segundo o Judaísmo, não é apenas a condição dos judeus, mas diz respeito à condição faltante do mundo em sua integridade. Segundo alguns cabalistas, dentre os quais Isaac Luria, o exílio define a própria situação da divindade, que criou o mundo exilando-se de si mesma, e tal exílio durará até o advento do Tiqqun, isto é, da restauração da ordem originária. É essa aceitação sem reservas do exílio, com a recusa que lhe é própria de qualquer forma presente de estatualidade, que funda a superioridade dos judeus em relação às religiões e aos povos que se comprometeram com o Estado. Os judeus são, em conjunto com os ciganos, o único povo que recusou a forma estado, não conduziu guerras e jamais se maculou com o sangue de outros povos. Negando do começo ao fim o exílio e a diáspora em nome de um estado nacional, o sionismo traiu assim a essência mesma do judaísmo. Não deveríamos nos espantar que esse afastamento tenha produzido outro exílio, o dos palestinos, e levou o estado de Israel a se identificar com as formas mais extremas e impiedosas do Estado-nação moderno. A tenaz reivindicação da história, da qual, segundo os sionistas, a diáspora teria excluído os judeus, vai na mesma direção. Mas isso pode significar que o judaísmo, que não havia morrido em Auschwitz, talvez hoje conheça seu fim. 

30 de setembro de 2024

Giorgio Agamben. La fine del giudaismo, disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-la-fine-del-giudaismo 

Imagem: Bombardeio israelense no norte da faixa de Gaza em 14 de outubro de 2023, quando o hospital Ahli Arab foi destruído provocando a morte de mais de 500 pessoas.

Trad.: Vinícius N. Honesko

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Violência e esperança no último espetáculo - de Giorgio Agamben


 

 Giorgio Agamben

Em novembro de 1967, quando Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo, a transformação da política e de toda a vida social numa fantasmagoria espetacular ainda não havia atingido a figura extrema que hoje se tornou para nós perfeitamente familiar. Por isso é ainda mais notável a implacável lucidez de seu diagnóstico.

“O capitalismo, em sua forma última – assim ele argumenta, radicalizando a análise marxiana do caráter de fetiche da mercadoria, naqueles anos tolamente desconsiderada – apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos, na qual tudo o que era diretamente vivido se distanciou numa representação”.

            Todavia, o espetáculo não coincide simplesmente com a esfera das imagens ou com aquilo que hoje chamamos de mídia: ele é “uma relação social entre pessoas, mediada através das imagens”, a expropriação e a alienação da própria sociabilidade humana. Ou melhor, com uma fórmula lapidar: “o espetáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem”.

            Por isso mesmo, no entanto, o espetáculo é apenas a pura forma da separação: onde o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência prática do homem se destaca de si mesma e se apresenta como um mundo em si. É na figura desse mundo separado e organizado por meio das mídias, que nas formas do Estado e da economia se compenetram, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre a vida social.

            Depois de ter falsificado o conjunto da produção, ela agora pode manipular a percepção coletiva e tomar posse da memória e da comunicação social para transformá-las numa única mercadoria espetacular, na qual tudo pode ser colocado em discussão, exceto o próprio espetáculo, que, em si, diz apenas: “aquilo que aparece é bom, e o que é bom aparece”.

            Em maio de 1988, Debord publicou um Comentário à sociedade do espetáculo, que acrescenta desenvolvimentos importantes às suas análises precedentes. Se antes ele havia distinguido duas formas de sociedade espetacular – a concentrada, que tinha seu modelo na Rússia stalinista e na Alemanha nazista; e a difusa, correspondente aos Estados Unidos e às democracias ocidentais –, agora ele mostra que, nos vinte anos subsequentes, impôs-se em escala planetária um terceiro modelo, para o qual Itália e França serviram como laboratório, definido por ele de “espetáculo integrado”.

            “O espetáculo integrado se manifesta ao mesmo tempo no estado concentrado e no estado difuso e, a partir dessa frutífera unificação, conseguiu empregar ao máximo uma e outra qualidade. Mas seu modo de aplicação se transformou. Considerando-se o aspecto concentrado, o centro dirigido agora se tornou oculto: nele não se situa mais nem um início reconhecido nem uma clara ideologia. Considerando-se o aspecto difuso, o influxo do espetáculo jamais havia determinado a tal ponto a quase totalidade dos comportamentos e dos objetos da produção social.

            O sentido último do espetáculo integrado é, com efeito, que ele se integrou na própria realidade à medida que dela falava: e que a reconstrói assim como dela fala, de modo que esta não está mais diante dele como algo estranho. Quando o espectador era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava: quando era difuso, dele escapava uma pequena parte; hoje, mais nada. O espetáculo se misturou a toda realidade permeando-a. Como era previsível em teoria, a experiência prática da realização desenfreada da vontade da razão mercantil mostra, rapidamente e sem exceções, que o tornar-se-mundo da falsificação era também um tornar-se-falsificação do mundo.

            Excetuando-se uma herança ainda consistente, mas destinada a se reduzir cada vez mais, de livros e edifícios antigos que, de resto, são cada vez mais frequentemente selecionados e colocados em perspectiva de acordo com a conveniência do espetáculo, não existe mais nada, na cultura e no mundo, que não tenha sido transformado e declinado segundo os meios e os interesses da indústria moderna”

            É difícil, para nós que vivemos os últimos vinte anos da história italiana, não subscrever essas análises. Isso pois é certo que, como parece sugerir Debord, a Itália foi o laboratório em que, enquanto o terrorismo formava o espetáculo de cobertura que monopolizava toda atenção, foi tentada e efetuada a passagem das democracias ocidentais para a última fase de seu desenvolvimento histórico. Jamais – nem mesmo nos anos 1950, quando os estados europeus, eliminados o fascismo e o nazismo, dedicaram-se com zelo a prosseguir sua obra de outro modo – uma tão grande massa de falsificação se concentrou num tempo tão breve em todos os aspectos da vida social.

            No espaço de poucos anos, ideologias, confissões religiosas, sindicatos, partidos políticos, jornais, dentre os quais existiam diferenças sensíveis e que representavam tradições opostas, entraram em acordo, como que seguindo as instruções de um modelo invisível, para repetir com as mesmas palavras o mesmo discurso sobre os mesmíssimos temas. E jamais, em algum regime totalitário, o discurso público foi tão homogêneo e, essencialmente, consentido como na Itália desses últimos anos, onde tudo se discutiu desde que não se pensasse em nada; e jamais, em nenhuma ditadura, os intelectuais, reduzidos com boa vontade ao papel de espectadores dos especialistas, foram mais solícitos em sua tarefa de obter consenso e tranquilizar por meio de ideias confusas. Isso pois, se o estado espetacular é o estágio extremo na evolução da forma Estado, em direção à qual, quase como que levados por uma força fatal, parecem se mover hoje todos os estados do mundo, o espetáculo, no sentido estrito de circulação midiática da informação, serve para impossibilitar que os problemas decisivos sejam colocados de modo claro e que os cidadãos disponham dos elementos para se formar uma opinião não contraditória sobre eles.

            Nesse sentido, os livros de Debord constituem uma das poucas descrições de nosso tempo à altura do problema: e, num registro de todo diverso, a única análise que possa ser comparada, em rigor e novidade, àquela que, exatamente quarenta anos antes, Heidegger havia conduzido nos parágrafos 25-38 de Ser e tempo. Só que a dimensão que Heidegger chamava de “impropriedade”, Uneigentlichkeit, não convive mais simplesmente com o ser-próprio, Eigentlich, do homem, mas, tornada autônoma, substituiu inteiramente este, tornando-o impossível.

            Assim, o “espetáculo” de Debord pode ser aproximado, sem se forçar muito, à fase extrema do desenvolvimento da técnica que Heidegger chama de Gestell, e sobre a qual diz ser o maior perigo e, ao mesmo tempo, o pressentimento da apropriação última do homem.

            Se isso é verdade, de que maneira hoje o pensamento pode acolher a herança de Debord? Dado que é claro que o espetáculo é a linguagem, a própria comunicatividade ou o ser linguístico do homem. Isso significa que a análise marxiana deve ser integrada no sentido que o capitalismo – ou, caso se queira em outros termos, o processo que hoje domina a história mundial – não era voltado apenas à expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística ou comunicativa do homem, daquele Logos no qual um fragmento de Heráclito identifica o “Comum”.

            A forma máxima dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política que nós vivemos. Isso significa também que, no espetáculo, é nossa própria natureza linguística que em nós é invertida. Por isso – justamente porque a ser expropriada é a possibilidade de um bem comum – a violência do espetáculo é tão devastadora; mas, pela mesma razão, o espetáculo, em cuja forma a humanidade parece estar cegamente indo ao encontro da própria destruição, contém também uma possibilidade positiva extrema, que a humanidade de forma alguma deve deixar escapar.

            O estado espetacular, com efeito e apesar de tudo, permanece um estado que, como todo estado, funda-se, como mostrou Badiou, não na relação social, da qual seria expressão, mas em sua dissolução, que proíbe. Em última instância, o estado pode reconhecer qualquer reivindicação de identidade, até mesmo (e a história das relações entre estado e terrorismo em nosso tempo é uma eloquente confirmação disso) a de uma identidade estatal em seu próprio interior. Mas que das singularidades se façam comunidades sem reivindicação de uma identidade, que humanos co-pertençam sem uma representável condição de pertencimento – o fato de serem italianos, operários, católicos, terroristas – é algo que o estado não pode de maneira alguma tolerar.

            Ainda assim, é o próprio estado espetacular, enquanto nulifica e esvazia de conteúdo toda identidade real, a produzir massivamente em seu seio singularidades que não são mais caracterizadas por nenhuma identidade social nem por qualquer real condição de pertencimento: singularidades verdadeiramente quaisquer.

            Isso pois é certo que a sociedade em que nos foi dado viver é também aquela em que todas as identidades sociais se dissolveram, na qual tudo aquilo que por séculos constituiu a verdade e a mentira das gerações que se sucederam sobre a terra já perdeu qualquer significado. Na pequena burguesia planetária, em cuja forma o espetáculo realizou de forma paradoxal o projeto marxiano de uma sociedade sem classes, as diversas identidades que marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e são acolhidas numa fantasmagórica vacuidade.

            Por isso, se é lícito avançar uma profecia sobre a política que vem, esta não será mais a luta pela conquista ou o controle do estado por parte de novos ou velhos sujeitos sociais, mas a luta entre o estado e o não-estado (a humanidade), disjunção incolmatável das singularidades quaisquer e da organização estatal.

            Isso não tem nada a ver com a simples reivindicação do social contra o estado, que por muito tempo foi o motivo comum de movimentos de contestação em nosso tempo. As singularidades quaisquer numa sociedade espetacular não podem formar uma societas, porque não dispõem de nenhuma identidade para fazer valer, de nenhuma ligação social para fazer reconhecer. Tanto mais implacável é o contraste com um estado que nulifica todos os conteúdos reais, mas para o qual um ser que fosse radicalmente privado de qualquer identidade representável seria, apesar de todas as declarações vazias sobre a sacralidade da vida e sobre os direitos do homem, simplesmente inexistente.

            Essa é a lição que um olhar menos desatento poderia ter retirado dos fatos de Tiananmen. O que mais espanta, de fato, nas manifestações do maio chinês é a relativa ausência de conteúdos determinados e de reivindicações. Democracia e liberdade são noções demasiado genéricas para constituir um objeto real de conflito, e a única demanda concreta, a reabilitação de Hu Yao Bang, foi prontamente acolhida. Ainda mais inexplicável se mostra a violência da reação estatal.

            É provável, todavia, que a desproporção tenha sido apenas aparente e que os dirigentes chineses tenham agido, de seu ponto de vista, com perfeita lucidez. Em Tienanmen o estado encontrou-se diante daquilo que não pode nem quer ser representado e que, todavia, apresenta-se como uma comunidade e uma vida comum. E isso independentemente do fato de que aqueles que se encontram na praça fossem efetivamente conscientes disso. Que o irrepresentável exista e faça comunidade sem pressupostos nem condições de pertencimento (como uma multiplicidade inconsistente, nos termos de Cantor) é precisamente a ameaça com a qual o estado não está disposto a sofrer.

            A singularidade qualquer, que quer apropriar-se do pertencimento mesmo, de seu próprio ser na linguagem, e que, por isso, declina toda identidade e toda condição de pertencimento, é o novo protagonista, não subjetivo nem socialmente consistente, da política que vem. Onde quer que essas singularidades se manifestem pacificamente seu ser comum, aí haverá uma Tiananmen e, cedo ou tarde, apareceram os canhões.

            Quanto a nós, o que quer que aconteça, podemos apenas repetir com Debord as palavras de Marx a Ruge: “Certamente não se pode dizer que eu tenha em muita estima a presente época; mas se não me desespero nela é porque sua situação desesperada me enche de esperança”.

 

Giorgio Agamben, Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo, in. Giorgio Agamben et. al, I Situazionisti, Roma, Manifestolibri, 1991, pp. 11-17.

Trad.: Vinícius N. Honesko   

 

Imagem: Praça da Paz Celestial (Tiananmen), junho de 1989.

sábado, 9 de setembro de 2023

A herança de nosso tempo - Giorgio Agamben



Giorgio Agamben


A meditação sobre a história e a tradição que Hannah Arendt publica em 1954 tem o título, certamente não casual, Entre passado e futuro. Tratava-se, para a filósofa judia-alemã há quinze anos refugiada em Nova York, de se interrogar sobre o vazio entre passado e futuro que havia sido produzido na cultura do Ocidente, isto é, sobre a ruptura já irrevogável da continuidade de qualquer tradição. É por isso que o prefácio ao livro se abre com o aforisma de René Char Notre héritage n’est précédé d’aucun testament. Ou seja, o que estava em questão era o problema histórico crucial da recepção de uma herança que não é mais, de modo algum, possível de transmitir. Cerca de vinte anos antes, Ernst Bloch, em exílio em Zurique, havia publicado, sob o título A herança de nosso tempo, uma reflexão sobre a herança que ele buscava recuperar vasculhando nos subterrâneos e nos depósitos da cultura burguesa já em desintegração (“a época está em putrefação e ao mesmo tempo está parindo” é a insígnia que abre o prefácio do livro). É possível que o problema de uma herança inacessível ou praticável apenas através de caminhos difíceis e aberturas meio escondidas que os dois autores, cada um a seu modo, suscitam, não seja de todo obsoleto, aliás, pode nos dizer respeito de modo íntimo – tão intimo que às vezes parecemos nos esquecer dele. Também nós fazemos experiência de um vazio e de uma ruptura entre passado e futuro, também nós, numa cultura em agonia, temos que procurar se não uma dor do parto, ao menos algo como uma parcela de bem que sobreviveu ao esfacelamento.

Uma busca preliminar sobre esse conceito deliciosamente jurídico – a herança – que, como com frequência acontece em nossa cultura, se expande além de seus limites disciplinares até envolver o próprio destino do Ocidente, não será, portanto, inútil. Como os estudos de um grande historiador do direito – Yan Thomas – mostram com clareza, a função da herança é a de assegurar a continuatio dominii, isto é, a continuidade da propriedade dos bens que passam do morto ao vivo. Todos os dispositivos que o direito concebe para suprir o vazio que corre o risco de ser produzido com a morte do proprietário não têm outro objetivo senão garantir, sem interrupções, a sucessão na propriedade.

Assim, talvez a herança não seja o termo correto para pensar o problema que tanto Arendt quanto Bloch tinham em mente. Dado que na tradição espiritual de um povo algo como uma propriedade simplesmente não tem sentido, nesse âmbito uma herança como continuatio dominii não existe nem pode de forma alguma nos interessar. Aceder ao passado, conversar com os mortos só é possível ao se quebrar a continuidade da propriedade, e é no intervalo entre passado e futuro que todo indivíduo deve necessariamente se situar. Não somos herdeiros de nada e de lugar nenhum recebemos herança, e é só sob tal condição que podemos relançar a conversa com o passado e com os mortos. Com efeito, o bem é, por definição, adespótico e inapropriável, e a obstinada tentativa de agarrar a propriedade da tradição é o que define o poder por nós refutado em todos os âmbitos, tanto na política quanto na poesia, na filosofia como na religião, nas escolas como nos templos e tribunais.

31 de julho de 2023.



Giorgio Agamben, L’eredità del nostro tempo, disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-u2019eredit-4-el-nostro-tempo?fbclid=IwAR2DZaV3G3OYN9WJdQikE5fgAS38B5fXEg2b8wklvfrL0M09r9YPi3HvEmo Trad.: Vinícius N. Honesko.

Imagem: Tiziano Veccelio. Três idades do homem. 1513, National Gallery of Edingurgh, Escócia.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O escritor é como um ladrão de luzes – Giorgio Agamben


Não sei se a arte tem um objetivo, mas acredito que sua grandeza depende da ligação que ela assume com a realidade. A cegueira da consciência convencional faz com que a vida escorra para fora da vida e acabe por substituir o real pelo filtro do uso. Van Gogh, em uma das cartas a Théo, escreve que com frequência os homens vivem prisioneiros “dans je ne sais quelle cage horrible, horrible, três horrible”[1]. É desde essa cela que a arte nos deve salvar, e se não o faz, se não se coloca diante da realidade de modo absolutamente autêntico, mesmo que seja guiada por uma inteligência excepcional, essa inteligência jamais será daquela espécie que Dostoiévski definia como primária, e a obra que dela surgirá não será uma obra de arte. Continua Van Gogh em sua carta: “Sais-tu ce qui fait disparaître la prison? C’est toute affection profonde, sérieuse. Être amis, être frères, aimer...”[2] Há um poema de Elsa Morante no qual se exprime um conceito análogo: “Só quem ama conhece... Só a quem ama o Diverso ilumina seus esplendores”. Mas a arte faz algo mais do que o amor, não se limita a descobrir a realidade, mas penetra mais profundamente nela.

Não é sem razões que, devendo falar de um livro de Elsa Morante, fizemos essas considerações. Elsa Morante é, talvez, em nosso século, a escritora que mais teve consciência dessa tarefa suprema da arte, e que a ela se manteve constantemente fiel mesmo passando pelo desespero mais profundo, quando a vida chegou fatalmente a encontrar “o risco mortal da consciência”. Os contos que compõe essa coletânea (exceto os três últimos, dentre os quais O xale andaluz, que dá título ao volume) foram escritos antes de 1948, ano em que saiu Mentira e sortilégio. Mas não acreditem, por isso, que O xale andaluz apresenta uma Morante menor. Não existe uma Morante menor, ao menos nos volumes que ela publicou: obras menores certamente não são esses contos, assim como não o eram os poemas de Álibi, aos quais a crítica não prestou suficiente atenção. A profissão de fé que se lê em Aventura “Para ti, meu santo capricho, rosto divino, sem armas e sem bússola parti... Para amores difíceis eu nasci” jamais foi desmentida nem faltou a consciência da missão da arte. Existem, no Xale andaluz, dois contos (o primeiro, O ladrão de luzes, e o penúltimo, Dona Amália) que são como os dois polos extremos do mundo de Morante, as duas faces de sua fé. Há algo de profundamente poético na imagem de Jusvin, o guardião do templo que é encarregado de manter acesas as lamparinas dedicadas aos mortos e que uma noite decide apagá-las para lucrar no preço do óleo. “Uma noite, ele tinha acabado de entrar quando vi as luzes uma por uma se apagar; e ele saiu, cauteloso, com seu apagador, deixando atrás de si uma imensa escuridão”. Jusvin é o obscuro símbolo do artista e do homem moderno; como Jusvin, o artista moderno é um ladrão de luzes, seu delito é o preço que ele deve pagar à “imensa escuridão” que envolve a humanidade. Se Jusvin é a tragédia da arte e da morte, Dona Amália é, pelo contrário, o esplendor da arte e da vida. Seu segredo está nisto: “que ela, diferentemente das pessoas comuns, nunca adquiria, em relação aos aspectos (mesmo os mais costumeiros) da vida, o hábito do qual nascem a indiferença e o tédio”.

É para esse ideal que tende o desejo do homem, e, quando não pode atingi-lo, ele é similar ao Dom Miguel que, tendo perdido Dona Amália, se retira num castelo e morre de melancolia: “se não podia gozar de suas riquezas junto dela, todas elas lhe pareciam areias do deserto”.

Mas Dona Amália e o ladrão de luzes são também duas distintas imagens da vida, da qual a primeira decai e eternamente renasce da segunda nos acontecimentos da existência individual. E os contos de Elsa Morante, como seus romances, são contos de educação (educação do homem para si mesmo, para a vida e para a morte). Mas Andrea Campese, que passa por experiências infantis e viris, é algo mais do que uma representação da mudança de visão que se segue à saída da infância. Não é, talvez, também a mãe, Giuditta, que renuncia a uma miragem para aceitar seu novo e mais real destino? A correspondente mudança de Andrea aparece sobretudo como um dos mais poéticos símbolos (e, por isso, com frequência sua história vai além de seus eventos particulares) da condição humana na literatura contemporânea, a imagem do Eu envolto no véu de Maia diante de um mundo de fantasmas e de aparências:

 

Um triste, arrogante herói

Envolvido por um xale andaluz

 

Resta dizer algo do estilo de Elsa Morante, aquele estilo que, creio, se mostra como um mistério extraordinário para aqueles que não conseguem amá-lo. Seu realismo é como que animado por um íntimo processo de metamorfoses num abissal irrealismo sem fundo. Talvez a melhor definição de seu estilo tenha sido dada pela própria autora, quando escreveu na dedicatória de Mentira e sortilégio: “a agulha é fervilhante, a tela é fumaça”. Chama a atenção a precisão com que são descritos lugares e objetos; e, todavia, aqueles lugares e objetos não são o protocolo do real, mas a fundação de uma nova realidade. Falou-se do sentido do demoníaco de Elsa Morante: mas eu acredito que seria preciso falar com mais propriedade de sentido da demonicidade. A percepção da vida das coisas, do demônio que está nelas, é também a característica do fabular, um termo de comparação que vem espontaneamente ao ler esses contos (pensemos em A avó e em O jogo secreto, e no próprio xale andaluz). Mas o segredo do estilo de Elsa Morante está em sua relação com o mundo, que é demasiado complexa para este breve comentário, mas que certamente lembra a definição que Spinoza deu da benevolência como amor nascido da piedade e piedade nascida do amor.

Foi dito acima que Jusvin e Dona Amália são os dois símbolos extremos da condição do artista e do homem moderno. Mas num outro conto aproxima-se de uma figura que é de algum modo intermediária entre as duas e que talvez exprima a verdadeira mensagem de Elsa Morante. Em Soldado siciliano, enquanto a protagonista descansa numa cabana onde encontrou hospitalidade para a noite, de repente entra um soldado. Ele tem em mãos uma lâmpada de mineiro e a protagonista os faz observar “que iria acordar a todos com sua luz cegante”. O relato que ele faz em dialeto siciliano se abre com as palavras: “meu nome é Gabriele”. O que ele busca é “ser atingido, um dia ou outro”.

Não é fácil esquecer da aparição desse soldado que vaga pelo mundo com uma lanterna de mineiro, esperando a morte. É uma imagem estranhamente irmã e ao mesmo tempo antitética àquela de Andrea Campese, que corre de noite em direção do estábulo envolvido pelo xale andaluz. Diante desse dom de consciência de Elsa Morante, vêm espontaneamente aos lábios as palavras de um de seus poemas: 

 

Tudo o que te pertence, ou que de ti provém,

é cheio de uma graça fabulosa.   

 

 

Giorgio Agamben, Lo scrittore è come um ladro di lumi, originalmente publicado no jornal “Paese sera”, em 10 de janeiro de 1964. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko



[1] N.T.: em não sei qual jaula horrível, horrível, muito horrível.

[2] N.T.: Você sabe o que faz a prisão desaparecer? É toda afecção profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar...

terça-feira, 16 de maio de 2023

A guerra na Galícia - Giorgio Agamben

 


 

Havia no centro da Europa regiões que foram apagadas pela carta geográfica. Uma destas – não é a única – é a Galícia, que hoje coincide em boa parte com o território onde há mais de um ano se combate uma lamentável guerra. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a Galícia era a província mais distante do Império Austro-húngaro, nos confins com a Rússia. Com a dissolução do império Habsburgo, os vencedores, certamente não menos iníquos do que os vencidos, entregaram-na à renascida Polônia, como a Bucovina, que com ela fazia fronteira, fora também caprichosamente anexada à Romênia. Os confins, a cada vez redesenhados com lápis e borracha nos mapas geográficos pelos poderosos, saem do tempo em que são encontrados, mas é provável que a Galícia não voltará a reaparecer nos inventários da política europeia. Muito mais do que a cartografia, o que nos importa é o mundo que naquela região existia – isto é, os humanos que no Königreich Galizien und Lodomerien (esse era o nome oficial da província) respiravam, amavam, ganhavam a vida, choravam, tinham esperanças e morriam. Pelas estradas de Lemberg, Tarnopol, Przemysl, Brody (pátria de Joseph Roth), Rzeszow, Kolomea caminhava um conjunto variado de rutenos (assim então eram chamados os ucranianos), poloneses, judeus (em algumas cidades quase a metade da população), romenos, ciganos, hutsuls (que entre 1918 e 1919 constituíram uma república independente de breve duração). Cada uma dessas cidades tinha um nome diferente, a depender da língua dos habitantes que nelas conviviam, em cada uma delas as igrejas católicas das esquinas se transformavam em sinagogas e estas, por sua vez, em igrejas ortodoxas e igrejas católicas orientais. Não era uma região rica, aliás, os funcionários da Kakânia a consideravam a mais pobre e atrasada do império; era, todavia, justamente pela pluralidade de suas etnias, culturalmente viva e generosa, com teatros, jornais, escolas e universidades em várias línguas e um florescimento de escritores e músicos que temos ainda que aprender a conhecer. É esse mundo que, de um dia a outro, foi política e juridicamente aniquilado em 1919, e a é essa multiforme e intrincada realidade que a ocupação nazista (1941-1944) e depois a soviética algumas décadas depois deram o golpe de misericórdia. Mas ainda antes de se tornar parte do Império Austro-húngaro, a terra que levava o nome de Halyč ou Galícia (segundo alguns, de origem celta, como a Galícia espanhola), e que no fim do medievo estava sob o domínio húngaro com o nome de principado de Galícia e Volínia, de quando em quando era contestada pelos cossacos, russos e poloneses, até que a grã-duquesa Maria Teresa da Áustria se aproveitou da primeira divisão da Polônia, em 1772, para anexá-lo a seu império. Em 1922, o território foi anexado pela União Soviética, com o nome de República socialista soviética ucraniana, da qual se separou em 1991 abreviando o próprio nome como República Ucraniana.

É tempo de deixar de crer nos nomes e nos confins marcados nos mapas e de se perguntar sobretudo sobre o que aconteceu, o que aconteceu daquele mundo e daquelas formas de vida que acabamos de evocar. Como sobrevivem – se sobrevivem – além dos infames registros das burocracias estatais? E a guerra agora em curso não é, mais uma vez, o fruto do esquecimento daquelas formas de vida e a odiosa e letal consequência daqueles registros e daqueles nomes?

 

Giorgio Agamben,

24 de abril de 2023.

 

Original disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-guerra-galizia

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Jesi, o mito vivido em estado de vigília - Andrea Cavalletti



Andrea Cavalletti



“Tudo isso é para mim, hoje, o significado da palavra mito. Uma máquina que serve para muitas coisas, ou, ao menos, é o presumido coração misterioso desta, o suposto motor imóvel e invisível de uma máquina que serve para muitas coisas, para o bem e para o mal. É memória, relação com o passado (...); e arqueologia, e pensamentos que gritam nos quadros da escola, e que, então, levam a se tornar mestres para provocar também nos outros as sensações do grito. E é violência, mito do poder; e, portanto, é suspeita que jamais pode ser apagada diante de evocações de mitos encarregados de uma função específica; a (...) de consagrar as formas de um presente que quer ser coincidência com um ‘eterno presente’.” Furio Jesi escrevia essas palavras em 1976, num de seus livros mais densos e bonitos, Esoterismo e linguagem mitológica. Estudos sobre Rainer Marie Rilke, que agora volta às livrarias em nova edição revista (apesar de um evidente erro de digitação) publicada pela editora Quodlibet em homenagem aos quarenta anos da morte do grande estudioso. De fato, foi em 17 de junho de 1980 que Jesi perdeu a vida, com apenas trinta e nove anos, em razão de um vazamento de gás carbônico em seu apartamento, em Gênova, onde ensinava Literatura alemã depois de ser nomeado por conta de sua evidente fama e de um período na Universidade de Palermo.

Em Hamburgo com Sigfried Giedion

Muito tempo antes, em 18 de novembro de 1958, Sigfried Giedion havia enviado à Avenida Rainha Margherita, em Turim – onde Furio, órfão do judeu Bruno, vivia com a mãe Vanna Chirone – uma carta (inédita) que começava com estas palavras: “Caro dr. Jesi, lembro com grande prazer de nossa breve conversa em Hamburgo”. Naqueles dias, o célebre historiador da Arquitetura havia falado de Jesi ao Diretor Associado da Fundação Rockefeller, John D. Marshall, e fará isso novamente lembrando, um par de meses depois, o quanto tinha ficado “impressionado por seu saber e instinto para as relações no congresso [internacional] de pré-história de Hamburgo de 1958”. É claro que o jovem que havia esboçado, num dia de fim de agosto, suas teses inovadoras sobre as instituições pré-históricas do culto e da magia não era, e nunca será, “doutor”: depois de ter publicado, em 1956, um artigo no renomado “Journal of Near Eastern Studies”, Jesi havia abandonado o liceu para seguir em Hildesheim e Bruxelas os próprios estudos de egiptologia. Tinha então fundado a revista “Archivio internazionale di Etnografia e Preistoria”, apresentando no primeiro número seu ensaio sobre as Conexões arquetípicas (1958), que pode ser definido como o núcleo de sua especulação subsequente, e até mesmo do mais completo e famoso “modelo cognoscitivo”, a máquina mitológica: amadureciam aqui as leituras da “coleção violeta” de Cesare Pavese e Ernesto De Martino, em particular das Raízes históricas do conto maravilhoso, de Propp, da História da civilização africana, de Leo Frobenius, e, sobretudo, dos Prolegômenos ao estudo científico da mitologia, de Jung e Kerényi, volumes que Jesi tinha levado consigo e sobre os quais tinha refletido no ano anterior, durante uma estada para pesquisa sobre o neoplatonismo e a religiosidade greco-ortodoxa no monastério da Gran Meteora. Operando, contra Jung, um genial deslocamento das “figuras orgânicas” dos arquétipos às constantes das relações compositivas da linguagem mitológica, ele revelava assim seu traço mais típico: o instinct for relationships, citado por Giedion, e sempre animado pela desconfiança em relação a qualquer hipóstase extra histórica e, assim, pronta para lançar sobre a história e a vida – portanto, como mito e violência do poder – o véu de sua imóvel eternidade. Se o precoce germanista que discorria sobre Mann com Barbara Allason iniciava naqueles anos o incansável confronto com a tradução das Elegias de Duíno, o adolescente egiptólogo revelava um caráter decididamente de mitólogo. Será Kerényi a lhe indicar o caminho e, ao definir os Prolegômenos como uma criatura centáurica, a distanciá-lo de tal modo de Jung que mesmo as “conexões arquetípicas”, julgadas “com a vocação moralista dos 16, 17 anos (...) ‘valores’ gnosiológicos”, para ele se mostrarão como “uma espécie de indecência emocional”. E será o mesmo magister, agora já conhecido e com quem se encontrou em Turim em 1965, a se tornar objeto, a contragosto, da mesma atitude crítica (e, ao mesmo tempo, rigorosamente autocrítica). Kerényi, com efeito, havia distinguido o mito tecnicizado para fins políticos do mito “genuíno”, ao qual chamara, com as palavras de Goethe, de fenômeno originário (Urphänomen). Jesi, pelo contrário, reconhecerá a origem mesma como produto de uma elaboração e aproximará de novo Kerényi de Jung afastando qualquer concepção marcada pelos sufixos Ur- ou arché-: não só o mito falso e fabricado para as massas, mas a própria presunção de uma relação privilegiada do poeta ou do exegeta com o “mito genuíno” e a palavra “verdadeira” equivalia, para ele, a uma apologética legitimação do poder que exclui a maioria da fonte do conhecimento.

Inspirado também por Martin Buber, Jesi não podia conceber uma autêntica relação com o mito que não fosse vivido “em estado de vigília” como experiência de verdade coletiva, isto é, que não implicasse a destruição consciente dos limites da cultura dominante, dos sistemas de poder que isolam os videntes e os mestres da massa dos sonâmbulos. Assim, se em 1967 havia encaminhado para publicação o fundamental Alemanha secreta, depois do Maio francês, quando a publicação de Literatura e mito provocava o rompimento, ao mesmo tempo teórico e político, com Kerényi, ele começa a escrever Spartakus. Simbologia da revolta[1], um cruzamento febril entre crônica e análise mitológica, montagem brechtiana e, ao mesmo tempo, um tipo de Finnegans Wake suspenso entre Nietzsche, Bakunin e Tambores na noite. A relação com o mito para ele já era uma relação com o atualmente incognoscível, mantido por meio das técnicas da paródia (como no “romance de vampiros”, A última noite) ou do estranhamento, e a pesquisa se tornava estudo das próprias modalidades de não conhecimento, ou melhor, tornava-se, a partir de 1972, com o esplêndido Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud (agora publicado em O tempo de festa[2]), análise do funcionamento da máquina mitológica, dispositivo que alude ao mito, seu centro escondido e experiência presumida, dando em troca disso as narrativas, os testemunhos legíveis na superfície da história. Um ensaio atual como A acusação de sangue (1973, Bollati Boringhieri 2007) se perguntava, nesse sentido, sobre a produção mitológica antissemita, animada – como no caso dos Protocolos dos sábios de Sião – por documentos que se mostram perigosamente verossímeis porque sua autenticidade permanece inverificável.

Vértices estilísticos na forma-ensaio

Elaborada em diálogo com amigos e correspondentes como Dumèzil, Starobinski, Scholem, a riquíssima produção jesiana circulava, no intervalo de poucos anos, das monografias sobre Kierkegaard e Bachofen (Bollati Boringhieri) a Mitologias ao redor do iluminismo, a A linguagem das pedras (Rizzoli 1978) ou a Materiais mitológicos, publicado em 1979 com Cultura de direita[3], e tocava vértices estilísticos e compositivos que a situam dentre os maiores exemplos da forma-ensaio contemporânea. Central se tornava, por fim, o tema simpateticamente benjaminiano da tradução, estudada no signo do mito da “pura língua” (um volume conclusivo dos Estudos sobre Rainer Marie Rilke, deveria ter indagado os problemas da traducibilidade e da duplicidade das linguagens).

Em cada um desses livros resplandece para nós o intenso e inesperado raio que afetou Giedion. “Autor como produtor”, crítico da cultura de elite e do analfabetismo de massa, Jesi não deixa de ensinar permanecendo como oposto do divulgador: se justamente quem quer ser “mais comunicativo” sobe de fato num pedestal indevido, dele se pode dizer o que escreveu sobre Scholem: “o indivíduo sapientíssimo, cuja sabedoria é inteiramente vivida, pode aparecer a si e aos outros como portador de uma coroa especial. Mas (...) valem aqui algumas palavras de Goethe: (...) Ainda assim, justamente por isso, eu era apenas um homem como os outros”.




[1] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1, 2018, trad. Vinícius N. Honesko

[2] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. “Leitura do ‘bateau ivre’ de Rimbaud”, in. Outra Travessia, n. 19 (2015), Florianópolis, UFSC, pp. 61-76, trad. Fernando Scheibe e Vinícius N. Honesko

[3] Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Cultura de Direita, Belo Horizonte: Âyiné, 2022, trad. Davi Pessoa. 
 
Publicado em Il manifesto, 14/06/2020. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko




sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Caixa de bóia



"O pensamento é ainda na criança, enquanto é criança, um estado de brincadeira. E o estado de brincadeira é sempre, na criança, um estado de graça”. José Bergamin. A decadência do analfabetismo. 


Enquanto sonha com a família do comercial de margarina, com uma esposa que ainda não apareceu em sua história, filhos, talvez gatos e cães soltos no quintal, ele não escreve: trabalha com materiais de escrita, prepara suas aulas, deixa, ou melhor, esconde em um canto da memória sua origem e sua condição de marginal. Escrever e se aventurar eram sinônimos em sua vida, uma paixão consumia a outra, a escrita e o tremor da contingência, um estado infantil de graça em plena maturidade. Mas o tempo de casamentos - desfeitos - e quarentenas cibernetizadas levaram-no à lassidão e à poupança (econômica e existencial). Poupar-se para o melhores anos vindouros, poupar-se para quando a pessoa certa entrasse em sua vida, poupar-se para uma velhice saudável. Os tempos de digladiagem - digladiar e vadiar - haviam se encerrado e, com eles, a fissura da escrita. Menos um poeta inexpressivo em um nicho também inexpressivo, menos um marginal para ser caçado pela polícia ou pelos fascistas, entidades que há muito se indiferenciaram. A escrita fora substituída pelo cálculo e a vida pela espera, alistamento voluntário e febril às hostes dos servos da escatologia do futuro. 

Porém, quando o demônio da meia noite e da carnificina bate-lhe à porta na forma do absurdo, ele, só e agoniado, lembra-se, e esta lembrança rápida e viva o salva. Sua madeleine é uma caixa de bóias, sim, a caixa de comidas, dessas que os caminhoneiros usam na lateral das carrocerias dos caminhões. Essas caixas, onde também estão alguns mantimentos, pratos e canecas esmaltadas, talheres e a velha faca de borracheiro.

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Sim, Reinaldo Moraes, não só as frases de caminhão podem nos salvar de desilusões amorosas ou existenciais, o acolhimento no meu caso veio da lembrança de uma cozinha portátil, que talvez expresse a minha condição inescapável no mundo, aquela da qual quero fugir - ou esconder - mas sempre retorno, a do exilado, sem lugar próprio, sem casa, condenado a errar. Aquele que instala - não constrói - acolhimentos provisórios durante a travessia, em lugares para os quais talvez nunca mais volte e provavelmente nunca mais serão por ele lembrados. Uma imagem de juventude que relampeja no momento crítico e perigoso de minha deserção.  

***           

Era o maior entroncamento rodoferroviário do sul do país, lugar de muitas oficinas de caminhão e autopeças, casarios decaídos no centro antigo, arenitos e ventos, pois só com ventos incessantes as rochas do entorno adquiriram as formações mais inusitadas, sendo populares as que se assemelhavam a grande objetos cotidianos, como uma taça, o símbolo geológico da cidade. Passei a morar em um bairro do entorno, eram meus anos de faculdade, vivendo sozinho fora da casa em que passara minha infância. A cidade era uma rota necessária no trabalho de meu pai, caminhoneiro, que transportava material reciclado – cargas altas de papel velho – para São Paulo. Foi em meu novo bairro que ele abriu uma conta de bar na única rua próxima em que ele podia parar o caminhão, um casarão que durante as manhãs servia um café adoçado com pão, preparado por uma senhora atenciosa, mas à noite, e meu pai não sabia deste detalhe, virava um bar mal afamado, frequentado pelas pessoas que não podiam pagar o preço das doses de pinga vendidas mais ao centro. Foi ali que começou minha fama marginal, pois costumava levar colegas da faculdade, pessoas nascidas em famílias de classe média, para o único lugar que naqueles anos me deu crédito, um risca-facas perigoso da Avenida Souza Naves. 

Quando estava muito cansado meu pai pedia para acompanhá-lo na viagem. Eu então deixava das modorrentas aulas de direito romano para atravessar a Régis Bittencourt, à época a Rodovia da Morte, com o Mercedes 1313, azul marinho, de propriedade do Sr. Albari, um senhorzinho com barriga d'agua, relógio e bijuterias douradas no pulso, que sofria com um filho dependente químico. O detalhe é que não dormíamos. 

A lembrança que guardo comigo: um desjejum tomado à beira da rodovia, com o sol nascendo, a caixa de bóia aberta com as fumaças do café preto e de um virado de feijão. A noite e o dia eram contíguos, o mundo era vasto e o 1313 era uma nau.

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Voltar para a cidade dos arenitos, à rotina regrada e solar de um estudante de direito, ao lado de pessoas engomadas, todas em busca de seriedade e posições no Estado, sabendo que meu pai ainda continuaria a estrada de retorno, deixava-me muito angustiado. Foi nessa época que começou minha evasão, que provavelmente durará enquanto eu estiver vivo.   

Também havia os livros velhos retirados da carga e vendidos nos sebos da cidade para eu conseguir ter alguns trocados, além do escambo pelos títulos que realmente eu queria ler. Minha relação com os livros no início da vida adulta foi a do desvio de carga, da interceptação ilegal, da troca clandestina. Mas, acima de tudo, do salvamento de brochuras antes de virarem uma pasta homogênea na fábrica de papel. Minha primeira biblioteca foi construída com o lixo.    

Mas é quase manhã em minha memória. É o entorno de uma cidade, naqueles arrabaldes em que a rotina da roça sobrevive nas franjas urbanas. Há uma mata e um brejo ao fundo, há coaxar de sapos e ainda persistem vagalumes, sim, mesmo ao amanhecer e perto da rodovia, eles não sumiram de todo.

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Meu nome vem da estrada. Passar por várias cidades e possuir um nome comum nos anos 80, como João da Silva, era arriscar-se a ser levado para uma delegacia e ter de provar aos tiras que você, forasteiro, não era a mesma pessoa de um homônimo que ali descumpriu a lei, algo que não raro acontecia com meu pai, que também possui um nome comum, alguém que em um único dia poderia atravessar vários estados da federação, em tempos de sistemas estaduais independentes de identificação e quando a internet era algo impensável (os mapas amarelos serviam como GPS, assim como as cartas náuticas dos antigos). Ter um nome como Francisco Barbosa poderia significar prisões indesejáveis, além da suspeita constante que pesava sobre alguém sem origem nobre, calças furadas e tênis chinesinho, assistente de caminhoneiro. Um nome diferente significava não apenas diferenciação forçada, mas acima de tudo proteção contra confusões. Disso, desde o início, minha mãe me salvou. Do bullying entre meus pares, termo que não conhecia à época, defendia-me com socos e pontapés.  

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O 1313 é só uma lembrança, meu pai não tem mais idade para atravessar a antiga Estrada da Morte sem dormir, é um trecho que faço hoje com a Mad Max (meu imaginário veículo pós-apocalíptico, apenas uma estilização pop para um ferro velho ambulante), descansando nos lugares que restam de nossas antigas paradas. Uma rodovia interestadual brasileira é uma rota forasteira e perigosa de passagem, mas para quem nela vive há sempre os lugares de abrigo, tão familiares quanto uma casa conhecida, onde se pode tomar um banho, descansar, permanecer. Tais lugares pouco a pouco estão desaparecendo, os antigos donos ou estão muito idosos ou já faleceram, transferindo a filhos que vendem estes antigos comércios para grandes franquias e conglomerados, onde não é possível permanecer sem fazer as honras obrigatórias ao capitalismo imperial de nosso tempo: consumir. Força motriz da uniformidade atroz que assola o mundo, cada vez mais disseminada. O Japonês da Serra do cafezal, da parmegiana em plena madrugada, famosa no trecho, que superava as parmegianas que vim depois a conhecer em São Paulo, com toda a poesia de um comércio japonês especialista em parmegianas, este restaurante, tão caro às minhas memórias de estrada, foi comprado pela rede Graal e transformado em uma loja de conveniência. 

Não se pode edulcorar a forma capitalista que quase destruiu o corpo de meu pai, por anos atravessando insone milhares de quilômetros para levar material a ser reciclado, que virou novos utensílios hoje certamente já descartados. Esse capitalismo infernal não foi derrotado, foi conquistado e federado por forças de acumulação ainda mais predatórias e absolutas, sem lugar para arrabaldes ou marginais, sem lugar para improvisos e evasões. Mas um 1313, um Jacaré ou um Fenemê ainda trafegam como mamutes de uma era extinta, com suas caixas de boia. Ao lado do parque temático monstruoso, na estrada de terra, escondidos dos guardas, as tendas ciganas ou um circo mambembe teimam em aparecer, um bar antigo e uma sintonia camarada sobrevivem. Uma chama de vida, mesmo que de um vaga-lume perdido em um jardim cercado por casas e  minifúndios, ainda alumia e insiste.    

***

Sim, era um escritor otimista e crédulo das insistências. Não sabia o que lhe esperava. Pasolini estava certo. Não só os vagalumes desapareceram de sua vida, e não convém criar metáforas distópicas com as faíscas dos cachimbos da minicraco instalada no quarteirão. Assim como os caminhoneiros lumpen de sua infância, mestres da improvisação, dos ilegalismos e do destemor, tornaram-se tão fascistas quanto a polícia militar que os perseguia.  


jonnefer francisco barbosa 2/9/22