terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Caro Agamben, te escrevo - Donatella di Cesare



 

De pensador de estatura mundial, crítico do neoliberalismo, a guru de complotistas, no vax e da extrema-direita. A filosofa escreve uma “carta desde longe” a uma referência que decai. Da pior forma possível

 

Donatella di Cesare

 

Enquanto o segundo ano da pandemia planetária chega ao fim, não se pode deixar de reconhecer, dentre os tantos efeitos devastadores da imensa catástrofe, um evento trágico que acerta em cheio a filosofia. Gostaria de chamar de o “caso Agamben”, não objetificar o protagonista – a quem, pelo contrário, me dirijo, como que escrevendo uma carta desde longe –, mas para sublinhar sua importância. Giorgio Agamben – goste-se ou não – foi e é o filósofo mais significativo dos últimos decênios, não apenas em cenário europeu, mas em nível mundial. Das salas de aula dos Estados Unidos aos mais periféricos grupos de oposição latino-americanos, o nome de Agamben, de algum modo também para além do filósofo, se tornou a insígnia de um novo pensamento crítico. Para os de minha geração, que viveram os anos 70, seus livros – sobretudo a partir de “Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua”, de 1995 – constituíram a possibilidade não apenas de investigar o fundo inquietante e autoritário do neoliberalismo, mas também de desmascarar a pseudo-esquerda triunfante e aguada, que hoje se autodefine progressismo moderado. Nenhuma crítica do progresso, um inventário filosófico parado, no máximo, nos anos 80, uma prática da política que a reduz a governança administrativa sob o ditado da economia. Nos traços da melhor tradição do século XX – de Foucault a Arendt, de Benjamin a Heidegger – Agamben nos ofereceu o vocabulário e o repertório conceitual para que tentássemos nos orientar no complexo cenário do século XXI. Como esquecer as páginas sobre o “campo”, que, depois de Auschwitz, mais do que desaparecer passa a fazer parte da paisagem política; e também aquelas sobre a vida nua, sobretudo daqueles que são expostos sem direitos; ou sobre a democracia pós-totalitária que mantém uma ligação com o passado?

Ainda mais traumático é o que aconteceu. No blog “Una voce” (Uma voz), hospedado no site da editora Quodlibet, Agamben começou a comentar a irrupção do coronavírus em termos semi-jornalísticos. A primeira postagem, de 26 de fevereiro de 2020, foi intitulada “A invenção de uma pandemia”. Hoje soa como uma funesta profecia. Naquele momento, porém, Agamben não era o único a se iludir que a Covid-19 não fosse algo mais que uma gripe. Faltavam dados e a entidade do mal ainda não havia sido revelada. Em meu pessimismo, que me levava a ver nos primeiros sinais o início de uma nova época, sentia-me circundada por pessoas que preferiam minimizar ou rechaçar o assunto. Durante o lockdown todos fomos afetados pelas medidas tomadas para enfrentar o vírus, tão indispensáveis quanto chocantes. A vida confinada nos muros domésticos, entregue às telas, privada dos outros e da polis, parecia quase insuportável – até a chegada do sofrimento daqueles que, sem respirar, lutavam pela vida nas terapias intensivas. A imagem dos caminhões que em Bergamo transportavam os féretros marcou para todo o mundo o ponto de não-retorno. O vírus soberano, que os regimes soberanistas, de Trump a Bolsonaro, pretendiam ignorar grotescamente ou utilizar para as próprias finalidades, manifestou-se em toda sua terrível potência. A catástrofe era ingovernável. E expunha a mesquinhez e a inépcia da política das fronteiras fechadas. A Europa reagiu.

Para Agamben, era tempo de reconhecer em letras garrafais: “Cometi um erro interpretativo, porque a pandemia não foi uma invenção”. Mas Agamben nunca retificou isso. Suas postagens seguiram até julho de 2020 com o mesmo tom. Enquanto a notícia de seu incipiente negacionismo se difundia no exterior, eu lia aquelas linhas constrangedoras convicta de que o pesadelo logo terminaria. Não foi assim. As postagens se tornaram matéria de dois livros e a “voz” do blog continuou a vaticinar, chegando ao ponto mais baixo com duas intervenções em julho de 2021 – “Cidadãos de segunda classe” e “Carteira verde” – nas quais o green pass é comparado com a estrela amarela. Uma comparação obscena, que deu estofo aos piores movimentos no vax ao legitimá-los. O resto, incluindo a “Comissão pela dúvida e pela precaução”, é história recente.

É motivada a preocupação com uma deriva securitária. A política do medo, a fobocracia que governa e submete o “nós” instilando o temor por aquilo que está fora, fomentando o ódio pelo outro, é o fenômeno político atual que caracteriza as democracias imunitárias e precede a pandemia. De diversas formas os filósofos, sociólogos, economistas e politólogos denunciaram isso. Tão justo quanto é sustentar que o contexto italiano é, nesse quesito, um laboratório político sem igual. No entanto, não se pode confundir o estado de emergência com o estado de exceção. Um terremoto, uma enchente, uma pandemia são eventos inesperados que são enfrentados de acordo com a necessidade. O estado de exceção é ditado por uma vontade soberana. É claro que um pode invadir o outro e, por isso, somos conscientes tanto do perigo de um estado de emergência institucionalizado quanto da ameaça representada por aquelas medidas de controle e vigilância que, uma vez introduzidas, correm o risco de se tornar inapagáveis. É verdade: não há governo que não possa se aproveitar da pandemia. Mantenhamos a suspeita, que é o sal da democracia.

Mas não encampamos o passo ulterior, o da deriva complotística. Por isso, não dizemos nem que a epidemia de Covid-19 é uma invenção nem que foi utilizada como pretexto intencionalmente, como faz Agamben na advertência de seu livro: “Se os poderes que governam o mundo decidiram utilizar-se como pretexto de uma pandemia – neste ponto, não importa se verdadeira ou simulada...”. Personalizar o poder, torná-lo um sujeito com tanta vontade, atribuir a ele uma intenção, significa endossar uma visão complotística. E também quer dizer que não considera o papel da técnica, a engrenagem que, como ensina Heidegger, utiliza-se daqueles que pretenderiam dela se utilizar. Os projetistas se tornam projetados. Hoje não é possível deixar de ver o poder através desse dispositivo. Justamente o vírus soberano mostrou todos os limites de um poder que gira no vazio, injusto, violento, e, no entanto, impotente diante do desastre, incapaz de enfrentar a doença do mundo.

Não, não me associo à vulgata anti-complô daqueles que, certos de possuírem a razão e a verdade, reduzem um fenômeno complexo a um espasmo mental ou a uma mentira. Com muito desprazer digo que as sombrias insinuações de Agamben, suas declarações sobre a “construção de um cenário fictício” e sobre a “organização integral do corpo dos cidadãos”, que remetem a um novo paradigma de biossegurança e a uma espécie de terror sanitário, o inscrevem, infelizmente, no panorama atual do complotismo.

Como é notório, Agamben foi reencontrado na direita, aliás, na ultra-direita, com um séquito de no vax e no pass. Ocasionalmente, até chegou a atacar a esquerda que defendia um plano de vacinação. Não sei de nenhuma palavra, pelo contrário, que tenha dito nesses dois anos sobre as revoltas nas prisões, sobre os idosos dizimados nas RSA (Residência Sanitária Assistencial), sobre os sem-teto abandonados nas cidades, sobre aqueles que de repente ficaram sem trabalho, sobre os entregadores, os trabalhadores braçais e os invisíveis. Esperaria do filósofo que nos fez refletir sobre a “vida nua” um apelo pelos imigrantes que nas fronteiras europeias são violentados, rejeitados e deixados à morte. Aliás, uma iniciativa que, com sua autoridade, teria tido certo peso. Nada disso.

Com frequência nos obrigou a elucubrações equivocadas e, sobretudo, ao tomar posições paradoxais, nos levou ao senso comum. Penso que talvez isso tenha sido um dos maiores danos, uma vez que a filosofia requer radicalidade. Mas os danos são ulteriores e dificilmente estimáveis, a partir de um excedente de descrédito lançado contra a filosofia. Para nós, agambenianos, que sobrevivemos a esse trauma, trata-se de repensar categorias, conceitos, termos, alguns – como “estado de exceção” – que já se tornaram quase grotescos. E será necessário salvar Agamben de Agamben, salvar o legado de seu pensamento dessa deriva. Tampouco é possível deixar de lado a questão política, uma vez que falha, da pior forma possível, uma das referências decisivas para uma esquerda que não se rende nem ao neoliberalismo nem à versão do progressismo moderado. O caminho será duro.

 

L’Expresso, 19 de dezembro de 2021.

pp. 24-25.  Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Pequeno parágrafo sobre o plástico

 

Quando será que a ciência inventará um decodificador dos sonhos dos cães? Sempre fico pensando: com que sonham os cães? Qual o mundo onde se passam suas histórias? Que língua eles falam nesse lugar? Talvez a melhor figura desse mundo possa ser a bolinha de plástico com a qual todo cão se alucina durante uma brincadeira qualquer. De fato, o plástico é, para nós - esses bichos que fizeram dos cães família (canis lupus familiaris) -, o melhor representante da eternidade. Esse polímero feito dos velhos dinossauros vive conosco e com os cães, isto é, também é parte da família. Mas enquanto os cães e nós haveremos de dizer adeus a este mundo - mesmo que um dia tenhamos sonhado nossa eternidade -, ao plástico caberá a majestade eterna sobre tudo o que ora insistimos, hipocritamente, em dizer familiar. Assim partiremos, não alhures, mas à origem, ao profundo e arcaico reino onde não haverá mais distinção entre o sonhos dos cães e os carbonos dos plásticos, dos cães e - possessivo já sem sentido - nossos. Enquanto isso, o cão sonha e o menino corre para acordá-lo com sua bolinha de plástico, ansioso para brincar e, durante a brincadeira, parar um pouco o tempo no instante eterno do riso. 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Estrondo comum - Jean-Luc Nancy



Jean-Luc Nancy

Da política, hoje, não resta nada.

Da política, hoje, resta tudo.

Não resta nada porque o que definiu o conteúdo da palavra “política" foi levado por uma história cuja reativação e, sem dúvida, revisitação não podem ser colocadas em questão.

Essa história foi de início a que viu nascer a polis: isto é, a forma que uma coletividade reunida e governada por si, e não por uma autoridade divina, dava a si própria. A cidade grega, como a romana, repousava numa agitação das organizações teocráticas ou tribais (com frequência imbricadas umas nas outras), mas não sem destas manter aspectos muito importantes das fores hierarquias estruturantes das sociedades tradicionais, bem como o deslocamento de uma parte da sacralidade social no que podemos nomear (com anacronismo) uma religião civil.

O desenho geral da cidade antiga já não tem nenhum sentido para nós, uma vez que já foi desfeito. A polis se formou, transformou e deformou com o movimento de uma civilização em mutação profunda, saindo da estrita reprodução agrícola para esboçar formas de produção e de comércio que Marx nomeou “pré-capitalistas". Por fim, inventa-se a representação de outra cidade, aquela de um Deus resolutamente fora do mundo e diante do qual nenhuma hierarquia nem dominação que estruturavam a sociedade se sustenta.

A tarefa de fazer o mundo – no sentido do espaço de circulação do sentido –, à qual a cidade tinha de responder, divide-se em duas: de um lado, a transfiguração do mundo em reino de Deus, de outro, a configuração do mundo dos homens. “Política” se torna assim o nome de um espaço por inventar: será nomeada "república" (em todos os valores sucessivos da palavra desde, ao menos, Bodin), espaço de criação do sentido (do mundo) cuja consistência e estabilidade (Estado) são assegurados pela soberania (a qualidade de origem e de fundamento do “direito público"). Uma vez que soberania cessa de ser identificada com uma figura (real, por exemplo) e se torna a do “povo”, ela toma como tarefa a configuração do espaço do dito povo. Isso se chama democracia.

Neste ponto, a política sofre uma profunda deiscência: por um lado, ela permanece identificada à República e ao Estado ao mesmo tempo que o campo de seu exercício e de sua legitimidade se determina como “nação”, identidade suposta e/ou moldada, por outro lado, mantendo os traços de uma instância figural, autoritária e separada, ela é votada à anular sua própria separação e a desaparecer enquanto esfera distinta a fim de renascer imergida em todas as esferas da existência comum, a começar pelo exercício da decisão (conselho, democracia direta).

A separação d'"a política" não foi abolida nem verdadeiramente mantida. O que de fato se produziu foi uma impregnação de todas as esferas da existência comum (isto é, tendencialmente, da mera existência, o comum de existir, humano e não-humano, aquilo de que a palavra “comunismo” tinha que se encarregar), tanto de esquemas infrapolíticos como suprapolíticos. Representações míticas e afetivas de destinos coletivos (cobrindo ao mesmo tempo enormes máquinas técnico-econômicas) ou representação da manutenção generalizada de um conforto na equivalência geral do valor de mercado. De um modo ou de outro, um mundo de completude ou de saturação indefinida.

É neste ponto que não resta nada da política e que, por isso, resta tudo: a questão da configuração de um espaço de circulação de sentido (também podemos dizer: de sentido, portanto, de circulação, sem completude) é inteiramente colocado, aberto, escancarado.

Nessa abertura ao menos um sinal pisca: todas as formas de completude ou de saturação – ideológicas e/ou técnico-econômicas – engendram desigualdades – desumanidades, insensibilidades, insanidades – não apenas tão pesadas como aquelas que nutriam as antigas hierarquias e sacralidades, mas, além disso, claramente desprovidas de toda aparência de justificação natural ou sobrenatural.

É por isso que a política subsiste ao menos como revolta – mesmo que seja, quando necessário, como revolta contra a política. “Revolta” não quer dizer "revolução” na medida em que esta última pôde carregar a projeção tanto de um retorno da base da política – com conservação de sua estrutura – quanto de uma abolição integral da separação de sua instância. A revolta não promete tantos ou tão grandes riscos e é por isso que ela pode desconfiar até mesmo da política revolucionária. Mas ela protesta a respeito do fato de que a existência é insustentável se ela não pode abrir para si espaços de sentido. De que isso não é possível enquanto reina – no lugar de uma circulação – a circularidade implacável de tudo-o-que-equivale-ao-mesmo. De que este “reino” é desprovido de toda espécie de glória e de graça, enquanto o outro, o do céu, flutua esvaído e deformado.

Subsistindo como revolta, ela talvez por nada subsista, mas talvez seja necessário não pensar em termos de subsistência, de resto ou de sobrevivência. É sobremaneira necessário nada esperar d'"a política", como se ela fosse o reservatório misterioso de não se sabe qual fonte escondida de sentido.

A revolta denuncia ainda “o espírito de um mundo sem espírito”, mesmo se ela não entende mais essa palavra da mesma maneira. Sem espírito: não sem "espiritualidade”, mas sem a vivacidade dos signos e dos gestos por meio dos quais somente se existe.

A revolta, no entanto, não explica o que seria a vivacidade de uma existência aberta a suas possibilidades. A revolta não discursa, ela estronda. O que quer dizer "estrondar”? É quase uma onomatopeia. É rosnar, berrar, rugir. É gritar, é murmurar, resmungar, gemer, indignar-se, protestar, zangar-se em muitos. Rosna-se sobretudo sozinho, mas estronda-se em comum. O comum estronda, é uma torrente subterrânea que passa por baixo fazendo tudo tremer. 
 
 
Jean-Luc Nancy, Grondement commun, in.: Lignes, n. 41, 2013/2, pp. 111-114. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-lignes-2013-2-page-111.htm
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko







domingo, 29 de agosto de 2021

Teo-po - Jean-Luc Nancy





Existem absurdos ou erros que não cessam de deslocar e prejudicam o pensamento. O epíteto "teológico-político" faz parte deles (assim como o substantivo homônimo). Essa palavra pretende designar, no mínimo, a aliança e, no máximo, a consubstancialidade dos dois registros que assinala, o teológico e o político.


Se o que se objetiva é uma aliança, trata-se daquela que, não há muito, era mais livremente chamada (e que cantava Jean Ferrat) de "o sabre e o aspersório". Caso se queira falar de uma consubstancialidade, o que se implica é uma natureza fundamentalmente teológica da política, ou, o que daria no mesmo, o inverso. De um ou de outro modo, dizemos que a política está autorizada por uma vontade divina mais ou menos dissimulada, ou que a religião tem como único objetivo dominar a coletividade.


As alianças são flagrantes, não é preciso se delongar sobre isso. Não é uma razão para se enganar, isto é, para esquecer que toda nossa tradição, teológica e política, repousa sobre a separação das duas esferas. Essa separação está, de início, no judaísmo desde o fim do reino de Israel (e a respeito disso, o atual Estado de Israel vive numa contradição interna). Ela é fundamental no cristianismo (os dois reinos) e há muito tempo é uma questão ativa para o Islã[1] (para o qual o chamado ao califado hoje é apenas uma palavra de ordem integralista).


Com frequência, o "direito divino” da monarquia francesa é compreendido erroneamente como quase-teocrático, quando, na realidade, era um expediente para se desvincular da feudalidade e que, ademais, sua elaboração, tanto teológica quanto jurídica, foi muito complexa e sutil.


A própria monarquia inglesa não pode ser chamada de "teológico-política” pois ela é politicamente constitucional e religiosamente muito mais moral do que teológica. A religião civil dos Estados Unidos torna consubstancial à nação o "in God we trust” inscrito em sua moeda: essa teologia é assim uma plutologia.


Na verdade, a política se funda numa autonomia integral (soberana) da instituição de um povo que se declara tal, enquanto a teologia se funda sobre a autonomia de uma interrogação a respeito do objeto nomeado “deus” em relação ao qual não se pressupõe nada mais do que seu nome. Uma não tem nada a ver com a outra.


***

Não podemos negligenciar essas relações elementares. Por um lado, Deus não tem nada a fazer na política. Por outro, e isso não é menos importante, a política não pode ignorar que ela está a cargo de tudo aquilo de que deus não se ocupa: ora, ele só se ocupa de seu próprio sentido (que ele é ou não é, e como é etc. – é isso a teologia). O sentido do mundo, ao contrário, não tem nenhum "sentido próprio"; ele se configura e se reconfigura sem cessar, sob forma de direitos, obras, ritmos, relações. A política não tem – sobretudo – que dar esse sentido (a não ser que ela tenha se transformado em teocracia, que não é política). Mas ela tem como tarefa abrir os acessos e permitir o exercício desse sentido: permitir que todos e cada um se deem seus sentidos.


Jean-Luc Nancy


p.s.: que não nos enganemos, se é preciso frisar, sobre o “Tratado teológico-político” de Spinoza, o qual trata apenas da separação dos dois; e também da "teologia política" de Carl Schmitt, que designa (erroneamente) o traçado secularizado de uma concepção (fundamentalmente política) do governo do mundo por deus por meio de sua Igreja.





[1] Lembremos de L'État inachevé – La question du droit dans les pays arabes, de Ali Mezghani, Gallimard, 2011. 

 

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O fim das gerações (ou quarto e sala em Cabul)


                                                                                                                                   Jonnefer Barbosa 

 A Renério Ribeiro de Almeida, in memorian 

A Thais, Tahyana e Bruno 


Experiência era o nome dado a tudo aquilo que uma geração poderia transmitir à outra. Seu conceito abrigava, de forma reconfortante, a ideia de uma passagem do tempo que envolvia formação e mudança, transmissibilidade de histórias e aprendizados, a própria diferença intergeracional garantida pela ritualização da morte - o luto como travessia, aprendizado da dor e liberação do fardo do passado – e incorporação desta em adultos (agora cientes de sua mortalidade) que receberão um legado para que possam edificar outras biografias e novas histórias.  

No fogo da resistência armada contra os nazistas, Capitaine Alexandre (codinome do combatente René Char) escreveu seu famoso aforismo em que afirma que “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”, publicado apenas em 1946 em Feuillets d'Hypnos, frase usada como mote por Hannah Arendt, uma década depois, para o conhecido postulado de uma quebra entre o passado e o futuro, que para a teórica significava o próprio fim da tradição: 

(...) o testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para o futuro. Sem testamento, ou resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor, parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e humanamente falando, nem passado nem futuro (...). (EPF, p. 31)    

Para Arendt a tradição não é o passado, mas as coordenadas de referência da memória. Traditio, para o direito romano, era a entrega de uma coisa (res) a outrem, que consumava os direitos de propriedade da coisa para o recebedor. Na análise arendtiana, mais importante do que a própria coisa transmitida está o liame que vincula o passado ao presente. 

Um amigo de Arendt, refugiado que morreu em um posto da fronteira franquista, tentando sair de forma clandestina da França ocupada e da caça nazista, não lamentava o fim da tradição e a impossibilidade da experiência, vendo nesta pobreza uma possibilidade, “de começar de novo, de contentar-se com pouco, a construir com pouco”, sem um olhar profundo ou interior. Liberar-se do fardo da experiência é desnorteante – a vertigem da falta de chão embaixo de pés descalços – e liberador, mas é uma possiblidade que carrega sempre consigo o risco das superficialidades e das opacidades, sobretudo quando acompanhadas da nostalgia da velha tradição perdida (o ready-made de Duchamp e o urinol tornado objeto-fetiche de uma ideia de obra que não mais se sustenta ou que funciona apenas como uma mercadoria).  

A geração de Char, Arendt e seu amigo aqui oculto pôde olhar com espanto a quebra que se colocava entre ela e as gerações anteriores, presas ao ainda próximo séc. XIX. Talvez mais do que a tradição ou a experiência, hoje nos deparamos com o fim das próprias gerações. Mais de dois anos de pandemia, submersos em uma catástrofe climática para a qual não há soluções técnicas ou científicas, impossibilitados do luto da vida que tivemos de abandonar e até de nossos mortos, somos os últimos humanoides da terra, mesmo que nossa presença terráquea persista de forma indefinida. 

Os nonagenários ainda vivos e as crianças que acabam de nascer fazem parte da mesma geração de últimos, o que nos diferencia é que muitos buscam seus lugares em escapes inexistentes  - milhares de pessoas tentando entrar nos aeroportos de milionários escapistas que buscam evadir-se para lugares impossíveis, algumas agarrando-se desesperadas às asas das necroespaçonaves Virgin ou Amazon e sendo queimadas vivas pelas turbinas, outras gastando seus últimos dias na terra para trabalhar duro e comprar uma passagem impossível que nunca será vendida – ou estão em seu quarto e sala em Cabul, contemplando a cidade tomada, quando os elevadores já pararam de funcionar e o lixo de semanas se acumula nas escadas. 

Resta estar em vigília, sem temor nem esperança, sem herança nem testamento. Organizar uma evasão terrena, irremediavelmente terrena, cuidar de quem ainda persiste na vida, respirar fundo no resto de atmosfera, alvoradas e auroras que ainda temos. E não perder o deslumbramento de olhar as estrelas, mesmo que muitas delas já não existam, mesmo que não faça sentido algum, não contenha experiência alguma. 



imagem: noite de Kabul.  


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Manifesto de "Rivolta femminile"



 

Em julho de 1970, aparece nos muros de Roma o manifesto da revista Rivolta femminile, baseado num texto elaborado por Carla Lonzi, Carla Accardi e Elvira Banotti.

 

"As mulheres sempre estarão divididas entre si? Jamais formarão um corpo único?" (Olympe de Gouges, 1791).

 

·             A mulher não deve ser definida em relação ao homem.

·             Nessa consciência se fundam tanto nossa luta quanto nossa liberdade.

·             O homem não é o modelo ao qual adequar o processo da descoberta de si por parte da mulher.

·             Em relação ao homem, a mulher é outra coisa. Em relação à mulher, o homem é outra coisa. A igualdade é uma tentativa ideológica de escravizar a mulher em níveis superiores.

·             Identificar a mulher com o homem significa apagar o último caminho de libertação. Libertar-se, para a mulher, não quer dizer aceitar a mesma vida do homem, posto que invivível, mas exprimir seu sentido da existência.

·             A mulher como sujeito não recusa o homem como sujeito, mas o recusa como papel absoluto.

·             Na vida social, recusa-o como papel autoritário.

·             Até agora, o mito da complementariedade foi usado pelo homem para justificar o próprio poder.

·             As mulheres são persuadidas desde a infância a não tomar decisões e a depender da pessoa “capaz” e "responsável": o pai, o marido, o irmão...

·             A imagem feminina com a qual o homem interpretou a mulher foi uma invenção do homem.

·             Virgindade, castidade, fidelidade não são virtudes, mas vínculos para construir e manter a família.

·             A honra é a consequente codificação repressiva desses vínculos.

·             No casamento, a mulher, privada de seu nome, perde sua identidade, e isso significa a passagem de propriedade que se desenrola entre seu pai e seu marido.

·             Quem gera não tem a faculdade de atribuir aos filhos o próprio nome: o direito da mulher foi cobiçado por outros e se tornou privilégio destes.

·             Somos obrigadas a reivindicar a evidência de um fato natural.

·             Reconhecemos no casamento a instituição que subordinou a mulher ao destino masculino.

·             Somos contra o casamento.

·             O divórcio é um enxerto de casamentos do qual a instituição sai reforçada.

·             A transmissão da vida, o respeito pela vida, o sentido da vida são experiências intensas da mulher e valores que ela reivindica.

·             O primeiro elemento de rancor da mulher em relação à sociedade está no fato de ser obrigada a enfrentar a maternidade como um dilema.

·             Denunciamos a desnaturação de uma maternidade, que é paga ao preço da exclusão.

·             A negação da liberdade de aborto entra no veto global que é feito à autonomia da mulher.

·             Não queremos pensar na maternidade a vida toda e continuar a ser instrumentos inconscientes do poder patriarcal.

·             A mulher está cheia de criar um filho que se tornará um péssimo amante.

·             Numa liberdade que sente ter de enfrentar, a mulher livra também o filho e o filho é a humanidade.

·             Em todas as formas de convivência, alimentar, limpar, atender e todo momento do viver cotidiano devem ser gestos recíprocos.

·             Por educação e por mimese o homem e a mulher já estão nos papeis desde a primeiríssima infância.

·             Reconhecemos o caráter mistificador de todas as ideologias, porque por meio das formas racionalizadas de poder (teológico, moral, filosófico, político) obrigaram a humanidade a uma condição inautêntica, oprimida e conformista.

·             Por trás de toda ideologia vemos a hierarquia dos sexos. Não queremos, de agora em diante, nenhuma proteção entre nós e o mundo.

·             O feminismo foi o primeiro momento político de crítica histórica à família e à sociedade.

·             Unifiquemos as situações e os episódios da experiência histórica feminista: nela a mulher se manifestou interrompendo pela primeira vez o monólogo da civilização patriarcal.

·             Nós identificamos no trabalho doméstico não retribuído a prestação que permite ao capitalismo, privado e de estado, subsistir.

·             Permitiremos aquilo que continuamente acontece ao final de toda revolução popular, quando a mulher, que combateu junto com os outros, encontra-se deixada de lado com todos os seus problemas?

·             Detestamos os mecanismos da competitividade e a chantagem que é exercida no mundo da hegemonia da eficiência.

·             Nós queremos colocar nossa capacidade laboral à disposição de uma sociedade que seja imunizada em relação a tais mecanismos.

·             A guerra sempre foi uma atividade específica do macho e seu modelo de comportamento viril.

·             A paridade de retribuição é um direito nosso, mas nossa opressão é outra coisa.

·             É suficiente a paridade salarial quando já temos nas costas as horas de trabalho doméstico?

·             Reexaminemos as contribuições criativas da mulher à comunidade e dissipamos o mito de sua laboriosidade subsidiária.

·             Dar muito valor aos momentos “improdutivos” é uma extensão de vida proposta pela mulher.

·             Quem tem o poder afirma: “Faz parte do erotismo amar um ser inferior”. Manter o status quo é, portanto, seu ato de amor.

·             Acolhemos a liberdade sexual em todas as suas formas, porque deixamos de considerar a frigidez uma alternativa honrosa.

·             Continuar a regulamentar a vida entre os sexos é uma necessidade do poder; a única escolha satisfatória é uma relação livre.

·             São direitos das crianças e dos adolescentes a curiosidade e os jogos sexuais.

·             Olhamos por 4000 anos: agora vimos!

·             Às nossas costas está a apoteose da milenária supremacia masculina.

·             As religiões institucionalizadas foram o mais firme pedestal dessa apoteose. E o conceito de "gênio" foi sua etapa inalcançável.

·             A mulher teve a experiência de a cada dia ver a destruição do que fazia.

·             Consideramos incompleta uma história que se constituiu sobre pegadas não perecíveis.

·             Nada ou quase nada foi transmitido da presença da mulher: cabe a nós redescobrir isso para saber a verdade.

·             A civilização nos definiu como inferiores, a Igreja nos chamou de sexo, a psicanálise nos traiu, o marxismo nos vendeu à revolução hipotética. Chamamos referências de milênios de pensamento filosófico que teorizou a inferioridade da mulher.

·             Consideramos os sistematizadores do pensamento como os responsáveis pela grande humilhação que o mundo patriarcal nos impôs: eles mantiveram o princípio da mulher como ser adicional para a reprodução da humanidade, vínculo com a divindade ou limiar do mundo animal; esfera privada e pietas. Justificaram na metafísica o que era injusto e atroz na vida da mulher.

·             Cuspamos em Hegel.

·             A dialética senhor-escravo é um acerto de contas entre coletivos de homens: ela não prevê a libertação da mulher, o grande oprimido da civilização patriarcal.

·             A luta de classes, como teoria revolucionária desenvolvida a partir da dialética do senhor-escravo, da mesma forma exclui a mulher.

·             Nós colocamos em discussão o socialismo e a ditadura do proletariado. Não se reconhecendo na cultura masculina, a mulher retira desta a ilusão da universalidade.

·             O homem sempre falou em nome do gênero humano, mas metade da população terrestre o acusa agora de ter sublimado uma mutilação.

·             A força do homem está em sua identificação com a cultura, a nossa está em refutá-la.

·             Depois desse ato de consciência, o homem será distinto da mulher e deverá escutar dela tudo o que concerne a ela.

·             O mundo não será omitido se o homem não tiver mais o equilíbrio psicológico baseado em nossa submissão.

·             Na ardente realidade de um universo que nunca revelou seus segredos, nós retiramos muito dos créditos dados às obstinações da cultura.

·             Queremos estar à altura de um universo sem respostas.

·             Nós procuramos a autenticidade do gesto de revolta e não a sacrificaremos nem à organização nem ao proselitismo.

 

Roma, julho de 1970

 

Comunicamos apenas com mulheres    

 

 

Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Por uma filosofia do testemunho - Giorgio Agamben

 


Giorgio Agamben

 

 

Este especial sobre o filósofo torinense é aqui apresentado por Agamben, que repercorre sua linha de “pensamento inatual” a partir de um escrito que ficou engavetado. Para Carchia, a filosofia, agora reduzida a ancilla scientiae, deve ser inseparável da instância viva de seu exercício.

 

O texto cujo breve excerto aqui publicamos havia sido originalmente concebido como uma contribuição para uma história do pensamento do século XX. Inédito por razões que ignoramos, ele se apresenta agora como uma suma testamentária do pensamento de Carchia (que morreria três anos depois, isto é, justamente, em 6 de março de dez anos atrás [2000]) e, ao mesmo tempo, como uma lúcida e originalíssima ambientação crítica da antropologia do século XX. Em cada um dos cinco densos capítulos que o compõe, o autor deixa, com efeito, florescer seu pensamento de forma contextual e, por assim dizer, como contraponto à releitura de uma das principais correntes da filosofia do século XX. Assim, no primeiro capítulo (O homem, uma testemunha), a tese da filosofia como testemunho é enunciada por meio de uma crítica da concepção que reduz a filosofia a "uma simples instância metódica”. É notório que, diante do desenvolvimento e triunfo da ciência moderna, a filosofia, ao menos a partir do neokantismo, realizou um recuo estratégico nas posições da teoria do conhecimento e suas condições de possibilidade. A fragilidade do bastião no qual a filosofia acreditara se entrincheirar agora está evidente para todos; reduzida à condição de ancilla scientiae, ela agora se encontra servindo a um ladrão que, diferentemente da teologia, de modo algum precisa de seus serviços. É contra esse persistente preconceito epistemológico que Carchia propõe sua ideia do pensamento como testemunho, inseparável da “instância viva de seu exercício" e do encontro e choque com "um evento que infinitamente o supera”. No mesmo gesto, contra toda sublimação do testemunho, Carchia lembra de que o verdadeiro testemunho não pretende se identificar com aquilo sobre o que testemunha, que “há um pudor do testemunhar, que consiste em manter a dissimetria e a diacronia com o absoluto”.

No segundo capítulo (Mito e existência), o contraponto crítico se joga entre o mito e a ambígua relação que a modernidade entretém com ele. Na perspectiva de Carchia, o mito é apenas a outra face do problema do testemunho, aliás, “a única figura ou exposição do testemunho acessível ao homem”. Justamente por isso, o mito autêntico está preso entre duas consciências: a que indica que a verdade para o homem é sempre um acontecer, que necessariamente se dá por meio de narrativas, metáforas e símbolos e, ao mesmo tempo, a “consciência de que narrativas, metáforas e símbolos não são a verdade". Longe de acontecer como figura e verdade de um passado arquetípico, o mito é, antes, experiência do perene caráter genitivo do pensamento, lugar não de uma dialética com o passado, mas de uma epifania do presente.

Contra essa experiência testemunhal do mito está a concepção do mito da modernidade, a qual (por um lado, na forma da desmitização e da ciência do mito e, por outro, na busca de uma “nova mitologia”), na verdade, é apenas a sombra produzida pela razão iluminista. De fato, segundo Carchia, racionalidade técnico-científica e irracionalidade mítica se espelham e remetem uma a outra num círculo vicioso em que elas se legitimam e, ao mesmo tempo, se deslegitimam reciprocamente. A afirmação da consciência moderna nasce, nesse sentido, de uma tortuosa “conjugação entre iluminismo e mitologia", na qual, como em nossas universidades, disciplinas retórico-humanistas e ciências da natureza podem continuar a fingir ignorar-se respeitosa e mutuamente apenas porque sabem que, na realidade, se tornaram os dois dóceis instrumentos do domínio de uma mesma subjetividade antropocêntrica. Para Carchia, por outro lado, mito é “reconhecimento, ao mesmo tempo, da raiz natural do humano e do caráter ultra-humano do espírito”, consciência de que o humano só pode se dar num campo de forças no qual “a natureza dá a energia ao espírito e o espírito da voz à natureza".

Não é possível aqui percorrer mais uma vez as particularidades da argumentação dos dois capítulos seguintes, A arte como figura do ultra-humano e Moral e moralística. Todavia, basta lembrar que Carchia declina sua crítica da estética e da moral do século XX retomando os conceitos guias do livro que permanece, talvez, como sua obra-prima precoce, Da aparência ao mistério (1983, o autor tinha trinta e seis anos): a aparência, lançada contra certa leitura da arte romântica, e o mistério, cifra da “fenomenologia do aparecer" dos moralistas clássicos e barrocos, são evocados em contraponto ao “totalitarismo da razão histórica” que, de Heidegger à teoria crítica, visa a liquidar a dimensão do homem natural, com seus hábitos e estilos de vida. É significativo que Carchia conclua seu reconhecimento crítico da antropologia do século XX com as mesmas páginas que fecham O amor do pensamento, livro publicado poucos dias antes de sua morte, em cujo lacônico prefácio havia definido sua intenção suprema como uma “filosofia do amor". Aí, Carchia parte de uma crítica rigorosa da definição da modernidade (comum tanto a Blumenberg e a Löwith como, em certa medida, a Derrida e ao pós-modernismo) como ruptura do nexo cristão de apocalipse e história. Contra essas concepções, definidas por uma mesma perda de espessura do tempo histórico, Carchia faz valer a necessária implicação mútua de história e apocalíptica. “A história", escreve, “é história apenas porque tem um fim, porque tende a um fim”, do qual pode receber "luz"; não termina, simplesmente, mas "começa a terminar", mantendo assim vivo o nexo entre apocalipse e história. Mais uma vez, entre a "euforia gnóstica" do fim e a melancolia desconstrucionista do diferimento infinito, Carchia inscreve seu gesto característico, que conjuga num milagroso equilíbrio o que parece impossível de manter unido: um platonismo anárquico que desemboca na contemplação da aparência e uma sóbria apocalíptica que perdura amorosamente na memória daquilo que não pode senão acabar.   

 

 

Texto de Giorgio Agamben publicado no suplemento Alias, de Il Manifesto, de 06 de março de 2010 (também disponível em: https://www.quodlibet.it/recensione/814)

 

Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.

domingo, 13 de junho de 2021

Um possível autorretrato de Gianni Carchia - Giorgio Agamben


 

 

Giorgio Agamben

 

Compreende-se mal o gesto mais específico do pensamento de Gianni Carchia caso se inscreva sua intenção apenas no interior da Estética – isto é, da disciplina acadêmica que coube a ele ensinar. Em seu caso, todavia, tampouco é possível prescindir dessa inscrição, simplesmente. Pelo contrário, como ele mesmo observou certa vez ao escrever que o cerne da Estética está onde não suspeitaríamos de procurá-lo, Carchia desde o início deslocou sua disciplina para uma espécie de pré-histórica terra de ninguém entre o distanciamento do mundo mítico e o nascimento da literatura. Nessa zona – crepuscular e ao mesmo tempo auroral – que se parece mais com a Urgeschichte de Overbeck do que com um campo disciplinar, o jovem Carchia instalou seu lugar de estudioso com sua pequena obra-prima Orfismo e tragédia (1979). Alguns anos depois, seu genial trabalho sobre o nascimento do romance (Da aparência ao mistério, 1983) iria ulteriormente definir – ou esfumaçar – seus limites. De acordo com uma inata sensibilidade política à qual, no início, não eram estranhas simpatias anárquicas, o que sempre estava em questão nesse limiar pré-histórico, todavia, era a própria história do ocidente, que, nos traços de Reinhardt e de Meuli, Carchia lê como uma luta – trágica e cômica ao mesmo tempo – pela aparência. Isso pois a contemplação e o des-encanto da aparência, nos quais ele identifica o legado supremo da filosofia antiga, já estão sempre se revertendo em mistério ou mistificação, segundo um diagnóstico cuja pertinência hoje é fácil de ser reconhecida. E se algo define a cifra incomparável de seu estilo, seu gesto ao mesmo tempo leve e singularmente decisivo, é justamente a severidade com que ele soube compreender a liberação das aparências como tarefa genuinamente filosófica. Nos últimos trabalhos – A fábula do ser. Comentário ao Sofista (1997) e O amor do pensamento (2000) – essa severidade atinge sua máxima limpidez e, além da Estética, a filosofia da arte parece resolver-se integralmente em arte da filosofia. Por isso, o nome de Carchia se inscreve de pleno direito no registro dos poucos nomes que contam no pensamento italiano dos últimos trinta anos, ao lado de Giorgio Colli, Furio Jesi e Enzo Melandri.

 

 

Do Orfismo a Walter Benjamin

 

Nascido em Turim em 1947, Gianni Carchia morreu em Vetralla no ano passado [2000]. Companheiro de estrada de outro grande pensador “à parte” da cena italiana, Furio Jesi, a quem era vinculado pela lição comum de Albino Galvano, Carchia deixou uma rica produção filosófica. Entre suas obras lembramos aqui de Orfismo e tragédia. O mito transfigurado (Celuc, 1979; depois republicado, em 2019, pela Quodlibet, edição a partir da qual sairá a tradução brasileira pela N-1); Estetica ed erotica. Saggio sull’immaginazione (Celuc, 1981); La legitimazione dell'arte (Guida, 1983); Dall'apparenza al mistero. La nascita del romanzo (Celuc, 1983); Il mito in pittura. La tradizione come critica (Celuc, 1987); Retorica del sublime (Laterza, 1990); Arte e bellezza. Saggio sull’estetica della pittura (Il Mulino, 1995); La favola dell’essere. Commento al Sofista (Quodlibet, 1997); L'estetica antica (Laterza, 1999); L'Amore del pensiero (Quodlibet, 2000); Nome immagine. Saggio su Walter Benjamin (Bulzoni, 2000; depois pela Quodlibet, 2009). É preciso não se esquecer, todavia, do grande trabalho de Gianni Carchia como tradutor de Adorno, Marx, Benjamin, Reiner Schürmann e Hans Blumenberg.  

 

Texto de Giorgio Agamben publicado no suplemento Alias, de Il Manifesto, de 7 de julho de 2001, p. 18.  

Trad.: Vinícius N. Honesko

terça-feira, 1 de junho de 2021

A prevenção. O panfleto sobre o fascismo do anarquista Luigi Fabbri



 

Andrea Cavalletti

Bolonha, 20 de novembro de 1920: os socialistas venceram mais uma vez as eleições e o maximalista[1] Enio Gnudi está pronto para assumir; a cerimônia iria transcorrer no dia seguinte. Porém, chega à delegacia um pequeno manifesto, que também é afixado pelos fascistas em todas as esquinas: recomendam que as crianças e as mulheres fiquem distantes do centro e das ruas principais, prometem uma batalha. O que acontece no dia 21 é conhecido, assim como o que aconteceu na cidade e na região interiorana da Emília Romana: sobre isso, é certo, fala Angelo Tasca em seu famoso livro; mas em 1922, muito antes de Naissance du fascisme,[2] publicado em Paris (1938), e também antes que a editora Mondadori publicasse O massacre do Palazzo d’Accursio,[3] de Vico Pellizari (1923), o episódio tinha estado no centro do “ensaio de um anarquista sobre o fascismo”, cuja publicação pela editora Cappelli foi organizada por Rodolfo Mondolfo: era A contrarrevolução preventiva, de Luigi Fabbi, autêntica obra-prima de lucidez política que hoje reaparece, preparada de modo admirável pela Assembleia Antifascista Permanente de Bolonha, pela Edições Zero in Condotta.

Nascido em Fabriano em 1877, amigo de Malatesta, preso e identificado como anarquista já com dezessete anos, autor de vários panfletos e de uma crítica ao leninismo, Ditadura e revolução, várias vezes vítima de agressões por parte das esquadras fascistas, Fabbri, que então ensinava em Corticella, é uma testemunha muito próxima e aguda daqueles dias:

“(...) depois do início pacífico da cerimônia na sala comunal, aparece[m] na sacada voltada para a praça o prefeito (...) e as bandeiras vermelhas, e em suas direções foram disparadas as primeiras rajadas. A tragédia começou imediatamente. Todos os que tinham armas, incluindo a força pública, começaram a disparar como loucos; foram lançadas bombas, e no interior da Prefeitura, na sala, entre as balas que entravam pelas janelas quebrando vidros e quadros, os gritos, a confusão mais apavorante, houve aqueles que perderam completamente a cabeça (...) e acrescentaram tragédia à tragédia, disparando contra os bancos da minoria" (onde se sentavam os fascistas).

O veterano nacionalista Giulio Giordani foi morto. Entre os socialistas morreu uma dezena de pessoas, foram quase sessenta os feridos. Mas se por um lado Giordani se torna o símbolo da "redenção da Itália”, por outro, também se torna o da “violência vermelha". As esquadras fascistas não tinham mais obstáculos.

Fabbri, por sua vez, observava: “Em política tem razão quem vence, mesmo se está errado (...) é fato que em 21 de novembro foi uma vitória fascista; a responsabilidade dos fascistas nos acontecimentos não diminui em nada sua vitória, aliás, a aumenta. Estar errado e vencer é, substancialmente, no terreno realista, vencer duas vezes...". E Bolonha, cidade de Zanardi,[4] o “prefeito do pão", dos spacci comunali[5] e dos preços controlados, do Ufficio Case[6] e das grandes intervenções de escolarização, agora é a cidade de uma derrota traumática e dupla: torna-se o berço do fascismo. E, nesse livrinho atualíssimo que na ocasião os esquadristas tiveram que queimar, torna-se o cenário de uma aguda análise.

Livres das retóricas e das obrigações do partido, os anarquistas, mais do que todos os outros, souberam dizer a verdade. E esta, sabe-se, nunca é politicamente indiferente ou inútil, e não tem apenas efeitos imediatos. Assim, disse a verdade Camillo Berneri, o primeiro a descrever em Mussolini grande ator (1934, mas agora editado pela Spartaco) os contornos do moderno divo das massas, descrevendo a crise do parlamentarismo como transformação espetacular da política. E disse a verdade Luigi Fabbri ao dirigir o olhar para as pequenas mas essenciais mudanças das formações sociais, e estabelecendo não a crônica triste, mas uma verdadeira microfísica do poder fascista. O nascimento do fenômeno novo e brutal se prolonga para ele no passado recente da Europa (a Grande Guerra), mas também se desdobra numa história do momento, feita de cumplicidade e de erros, medos, omissões fatais e cegueiras inadmissíveis. E se o fenômeno fascista revela uma fisionomia única, é porque responde a uma função específica: justamente a “preventiva", que o inscreve na prática securitária e o torna sobretudo um “verdadeiro instrumento de governo”.

É certo que o fascismo gozou desde o início, e em Bolonha em particular, da colaboração da polícia, amplamente empenhada nas prisões dos socialistas, dos anarquistas ou dos simples operários na repressão de todo "complô contra a segurança do Estado". Mas, observa Fabbri, o fascismo também nasce do autoritarismo, das violências das Ligas vermelhas, das extorsões perpetradas por seus dirigentes: onde de fato se pratica a filiação forçada, onde “todo o socialismo consiste em ser organizado para receber mais, (...) para votar para o deputado que defenda os direitos da liga ou para a administração (...) que dê mais trabalho à associação laboral"; nesses casos as massas aceitam por conta própria o líder da liga, “mas nem sempre o amam”; aí, nesse caldeirão de interesses e ressentimentos, estão sendo preparadas inúmeras reviravoltas.

Onde a política é sinônimo de cuidado e segurança, ordem sindical ou policial, aí está o fascismo, como sócio fiel ou possibilidade implícita. Seu nascimento, poderíamos dizer, situa-se no cruzamento de dois dispositivos: o estatal, ou melhor, a proteção violenta da propriedade, e o do sindicato dos funcionários, que afirma e defende outras vantagens. Apesar de sua inimizade aparente, os dois dispositivos têm em comum uma única matriz protetiva-securitária (declinada em nome da Propriedade e do Trabalho), e conspiram juntos. Com o fascismo, sua síntese monstruosa, aparece um sindicato aliado explícito da polícia e que é capaz de prometer, “como as ligas vermelhas, o posicionamento e a defesa dos salários", mas também de manter essas promessas em virtude de suas relações privilegiadas com os patrões. É uma defesa dupla, ambígua (da pequena burguesia em crise, dos operários desempregados, mas também do poder que os explora e ameaça), que será, ao mesmo tempo e necessariamente destrutiva. Dirigido não contra este ou aquele partido, mas por todos os lugares e geralmente “contra a classe operária como classe”, o fascismo logo se revela uma arma desproporcional, um organismo violento que ganha vida própria "e, como tal, não pode aceitar se suicidar, apesar do caráter ilógico de sua situação"; nas margens dos fascistas já enquadrados, cresce com efeito uma massa de simpatizantes, agricultores, lojistas, empregados, jornalistas... massa cinzenta na aparência, mas de todo modo perigosa, “que como todas as massas, uma vez lançada continua avançando sozinha, e não retorna por vontade própria".

Fabbri entregou à tradição política o conceito de contrarrevolução preventiva, o qual, explicam os organizadores, emaranha-se de forma contínua na história do século XX: usado nos anos 30 pelos revolucionários na Espanha, será, por exemplo, retomado por Alexandre Koyré em 1945, quando terá de explicar a especificidade do totalitarismo, também por Daniel Guérin, depois pelo Marcuse de Counterrevolution and Revolt e, por fim, pelo último Debord. Mas Fabbri também mostrou como a prevenção coincide, para o Estado, com a violência sem limites, articulando, na aurora do fascismo, uma verdade irrevogável: "retardada (...) a catástrofe chega, porém tremenda e extremamente maior”. Ele morrerá em Montevidéu em 1935, sem ver até onde o impulso fatal levaria. Mas, nas páginas de seu livro, e naquela multidão obtusa, a Itália ainda pode se espelhar.          

 



[1] N.T.: O Programa de Erfurt, aprovado durante o Congresso do Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD) em 1891, em Erfurt, era dividido em duas partes: o programa máximo e o programa mínimo. Maximalistas eram os socialistas que propunham a realização do programa máximo, qual seja, a tomada de poder por parte do proletariado e a revolução social. Nesse sentido, maximalista tem sempre a conotação de "revolucionário" dentro dessa conjuntura histórica do socialismo.

[2] N.T.: Em 1938, quando publica Nascimento do fascismo, Tasca já está há 12 anos em Paris, para onde emigrou. Além disso, em 1929, em razão de sua oposição ao Stalinismo, foi expulso do – então clandestino – Partido Comunista da Itália.

[3] N.T.: Palazzo d’Accursio é onde fica a sede da prefeitura de Bolonha.

[4] N.T.: Francesco Zanardi foi o primeiro prefeito socialista de Bolonha entre 1914 e 1919.

[5] N.T.: Os spacci comunali, também chamados de negócios de Zanardi, foram armazéns municipais de venda de alimentos criados por Zanardi, em 1914, com o intuito controlar a disparada do preço dos alimentos após o início da Primeira Guerra Mundial.

[6] N.T.: Escritório municipal das casas. Tratava-se de uma secretaria municipal, também criada durante o mandato de Zanardi, responsável pela gestão dos contratos de aluguel na cidade e pela organização das questões sanitárias e de saúde pública ligadas à habitação.

 

Texto publicado pela primeira vez no suplemento Alias, de Il Manifesto, em 20 de março de 2010. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko