sexta-feira, 25 de março de 2022

[Quase um testamento] - trechos (Pier Paolo Pasolini)


 

Temas religiosos

 

Sou um marxista que escolhe temas religiosos. Que legal! Agora existe também um monopólio sobre a religião? Eis a conclusão de quarenta anos de propaganda horrenda e de macarthismo! Muitos dos homens mais profundamente religiosos deste século são comunistas. Penso, por exemplo, em Gramsci (o fundador do PCI). Eles lutaram pelo puro altruísmo e deram a sua vida apenas um alto ideal (que podemos definir, sem mais, acético), pelo qual desafiaram a prisão, torturas e a morte. Compreenda-se que quando digo religioso não pretendo dizer crente numa religião confessional.

Os comunistas são, com efeito (quase todos), laicos e positivistas. Mas eles herdaram o laicismo e o positivismo da civilização burguesa (a grande civilização burguesa que fez a revolução liberal antes, e, depois, a revolução industrial). Só que, depois, no burguês, o laicismo e positivismo permaneceram como tais (patrimônio, todavia, de uma elite burguesa), enquanto o nacionalismo e o imperialismo, nascidos como consequência direta do capitalismo, levaram o burguês médio, muito rapidamente, às velhas posições clericais: a cultivar uma religião de puro interesse, hipócrita, estatal e até mesmo feroz (veja-se o clero czarista e franquista). Portanto, quando muito, a pergunta legítima de fato não é “pode um comunista ser religioso?”, mas, antes, “pode um burguês ser religioso?”.

 

Creio em Deus?

 

Sempre, desde os quatorze anos, me defini como não crente. Nos últimos meses, pela primeira vez concebi, de algum modo, uma ideia, mesmo que imanentista e científica, de Deus.

Como cheguei a ela é algo muito curioso. Sempre me interessei por problemas linguísticos, ainda que no campo estritamente italianístico, e na Itália acabo considerado como um linguista interessante, mesmo que mal informado e estranho. Recentemente, me apaixonei pelas pesquisas linguísticas sobre o cinema. E, é natural, não podia deixar de recorrer à semiologia, ciência para a qual os sistemas de signos são infinitos e não apenas linguísticos.

Cheguei à conclusão de que o “cinema”, ao reproduzir tal ciência, faz uma perfeita descrição semiológica da realidade; e de que o sistema de signos do cinema é, na prática, o mesmo sistema de signos da realidade. Portanto, a realidade é uma linguagem! É preciso fazer a semiologia da realidade mais do que a do cinema! Mas se a realidade fala, quem é que fala e com quem fala? A realidade fala com si mesma: é um sistema de signos por meio do qual a realidade fala com a realidade. Tudo isso não é spinoziano? Essa ideia da realidade não se assemelha à de Deus?

 

Golpes de Estado

 

Tanto a tentativa de golpe de estado na Itália de 1964 quanto a de golpe, bem sucedida, na Grécia são acontecimentos no âmbito da OTAN. Na Itália, teve início um processo contra os jornalistas do “Espresso” que denunciaram à opinião pública alguns dos responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. A investigação parlamentar, no entanto, foi parada pelo partido católico (democrata cristão) com o apoio dos socialistas. Evidentemente, não se quer chegar à responsabilidade internacional.

Nós, intelectuais (nesse acontecimento muito grave), brilhamos por nossa ausência. É verdade que nos jantares, nos bares, falamos a torto e a direito contra a classe política dirigente, contra a burguesia italiana que a exprime, e, em geral, contra este pequeno, marginal, provinciano, indiferente e miserável país que é a Itália. Mas, e nós? O que fazemos? Talvez somos melhores? O que é que nos faz ser ausentes e mudos? O medo? A prudência? A desconfiança? A preguiça? A ignorância? Sim, tudo isso. 

 

Trecho de [Quasi un testamento], publicado em Pier Paolo Pasolini, Saggi sulla politica e sulla società, org. de Walter Sitti e Silvia De Laude, Milão, Mondadori, 1999, pp. 866-869. Originalmente, [Quasi un testamento] foi fruto de uma série de encontros entre Pasolini e o jornalista inglês Peter Dragadze. O texto foi publicado em 17/11/1975 em "Gente". Trad.: Vinícius N. Honesko

segunda-feira, 21 de março de 2022

O problema do fim do mundo - Ernesto de Martino


 Ernesto de Martino

 

Quando o professor Prini anunciou o tema desta minha intervenção difundiu-se na sala uma reação que nos velhos relatórios parlamentares era indicada com a palavra sensacional. Dentre outras coisas, para muitos deve ter parecido que num congresso sobre as perspectivas do mundo de amanhã seria ao menos impertinente (no duplo sentido: não pertinente e descaradamente provocador) pedir a palavra para lembrar aos participantes de que amanhã o mundo, enquanto mundo cultural humano, pode acabar e que uma resposta qualquer ao como o mundo poderá e deverá ser amanhã comporta uma resposta preliminar: se amanhã haverá um mundo e se hoje não há o risco de que pelo menos certas forças conspiram para seu fim. Outros dentre os participantes poderiam mesmo pensar que a simples proposição de um problema do gênero é algo ligeiramente arguto, no sentido napolitano do termo, e que chamar a atenção para tal possibilidade extrema tem como único efeito deprimir os ânimos com sinistras evocações e induzir aos comportamentos defensivos, entre o sério e o irreverente, que constituem as esconjurações utilizadas nessas circunstâncias. No entanto, devo convidar os presentes à superação dessas reações imediatas, assegurando-lhes ao mesmo tempo que minha intervenção não tem nenhuma intenção de deprimir os ânimos, mas simplesmente de trazer uma contribuição, ainda que modesta, à justa proposição de um problema que, justamente, se ignorado ou ligeiramente deixado de lado pode comportar soluções catastróficas negativas para toda a humanidade.

No fundo, como problema preliminar em relação ao do mundo de amanhã está a relação homem-mundo, na forma como essa se configura na moderna consciência cultural. Creio que essa relação se articula em dois momentos distintos e ligados, acerca dos quais o mundo contemporâneo mostra ter uma sensibilidade particularmente aguda. Por um lado, o mundo, isto é, a sociedade dos homens atravessada pelos valores humanos e operável segundo tais valores, não deve acabar, mesmo se – e, aliás, justamente porque – os indivíduos singulares fruem de uma existência finita; por outro lado, o mundo pode acabar, e não tanto no sentido natural de uma catástrofe cósmica que pode destruir ou tornar inabitável o planeta Terra, mas no sentido de que a civilização humana pode auto-aniquilar-se, perder o sentido dos valores intersubjetivos da vida humana, e empregar as mesmas potências de domínio técnico da natureza segundo uma modalidade que, por excelência, é privada de sentido, isto é, para aniquilar a própria possibilidade da cultura. Se tivesse que especificar nossa época em seu caráter fundamental, diria que ela vive, talvez como jamais aconteceu na história, na dramática consciência desse deve e daquele pode: na alternativa entre o mundo que deve continuar mas que pode acabar, entre a vida que deve ter um sentido mas que pode também perdê-lo para sempre, e de que o homem, apenas o homem, carrega toda a responsabilidade desse deve e desse pode, não sendo garantido por nenhum plano da história universal operante, independentemente das decisões reais do homem em sociedade.

Sem dúvida, na consciência cultural de nossa época a relação entre o que poderíamos chamar de ethos da transcendência da vida nos valores intersubjetivos e aquilo que, pelo contrário, representa a ruína desse ethos com a correlativa perda de sentido e de operacionalidade do mundo, apresenta uma grande variedade de concretas manifestações que uma pesquisa sistemática deveria colocar em evidência e submeter ao juízo. A manifestação extrema, na qual o risco se revela da forma mais radical, adquire aspectos nitidamente psicopatológicos, como por exemplo na Weltuntergangserlebnis esquizofrênica; mas mesmo sem chegar a esses casos limites, nuances mórbidas do gênero mostram-se copiosas na ruína das linguagens artísticas, assim como em certas correntes existencialistas e em certas modalidades do costume. Quando Heidegger em Sein und Zeit teoriza o Geworfenheit[1] do ser-aí; quando Sartre em La nausée ilustra o mundo indigesto aprofundando-se no nada; quando David Herbert Lawrence lamenta que perdemos o sol, os planetas e o Senhor com as sete estrelas da Ursa recebendo, por outro lado, o “pobre, achatado e mesquinho mundo da ciência e da técnica”; quando Moravia em La noia descreve “a doença dos objetos”, vemos nessas expressões culturais, ainda que tão diversas, uma Stimmung comum, a assinalação de um mesmo risco radical, isto é, a possibilidade de um mundo que se arruína quando se arruína o ethos cultural que o condiciona e o sustenta. Por outro lado, expressões culturais tão heterogêneas como o instinto de morte de Freud e o ocaso do ocidente de Spengler parecem acenar na mesma direção.

Não é improvável que uma tão aguda consciência cultural do fim do mundo na época moderna tenha se alimentado também da possibilidade da guerra nuclear ou dos terrificantes episódios de genocídio dos campos nazistas. Mas já o fato de que tivemos necessidade dos 200.000 de Hiroshima ou dos 6.000.000 de judeus mortos nos campos de extermínio nos indica quão profundas são as raízes de nossa crise. De fato, deveria ser o suficiente imaginar apenas um rosto humano que carrega os signos da violência e da ofensa sofrida por outro humano para colocar em movimento, em quem observa aquele rosto, a dramática tensão do mundo que pode mas não deve acabar. Que os rostos perdidos por culpa humana sejam 200.000 ou 6.000.000 não acrescenta nada ao escândalo daquele único rosto, e não é preciso mais do que aquele único rosto para questionar o mundo e para mobilizar o ethos cultural humano que sempre é chamado a tornar mais habitável e mais familiar o planeta Terra para cada um e para todos. Mas, à parte Hiroshima e os campos de concentração, existem outros aspectos de nosso mundo moderno que tornaram particularmente aguda nossa sensibilidade em relação ao risco do fim. As rapidíssimas transformações nos gêneros de vida introduzidas pela difusão do progresso técnico, as correntes migratórias do campo à cidade, de regiões subdesenvolvidas a regiões industriais, o salto repentino de economias mais ou menos atrasadas ou mesmo de sociedades tribais a economias e sociedades agora inseridas no mundo ocidental levaram à crise um grande número de pátrias culturais tradicionais sem que, no entanto, a integração na nova pátria cultural tivesse tido tempo de amadurecer. Os rápidos processos de transição, as lacerações e os vazios que tais processos comportam, a perda de modelos culturais numa situação em que não podem mais ser utilizados aqueles familiares induzem a crises graves e repropõem, da maneira mais dramática, os problemas elementares da relação com o mundo. Apenas nesse quadro conseguimos compreender, por exemplo, as reflexões de um operário francês como Navel, que em seus Parcours expõe, de modo autobiográfico, a passagem de sua origem camponesa à condição operária exprimindo, ademais, de maneira recorrente, a reconquista do mundo e do próprio corpo que a vida de uma fábrica moderna colocava em causa de forma radical. De noite, o operário Navel volta a seu quarto e prepara para si a janta, e eis que se surpreende no ato de abrir a porta do armário e pegar o saleiro para temperar a comida.

A mão, sensível às percepções decorrentes da madeira do armário, do ferro do puxador, do vidro do saleiro e da pitada de sal, me maravilha: eu me espantava por encontrar tamanho tesouro de conhecimentos na simples pele dos dedos. Procurava viver completamente acordado, sempre consciente do momento, da coisa, do gesto. O adulto vive dormindo em suas rotinas. É sempre bom aprender sobre a vida, e, de repente, eu estava apreendendo sobre a árvore verde pelo contato direto. Não há senão a vida, sobre a qual nos perguntamos se vale a pena ser vivida. Enquanto a mão segurava sua pitada de sal em cristais diminutos, sabia que ela era similar àquela de todas as mulheres da terra quando fazem o gesto de abrir o saleiro para salgar a comida, o gesto que eu via minha mãe fazer; e eu dialogava com ela na fugacidade do sonho: “Eu salgo minha comida, minha mão é a tua, e tu não estás morta”. Mas além de minha mãe, eu estava em relação com todos os mortos, com todas as presenças que tinham me dado uma mão como esta, similar às outras. O homem vive com suas mãos. A minha tinha pertencido a uma geração de servos. Com frequência eu tinha preenchido sua solidão no fornilho quente de um cachimbo, depois de um dia trabalhando com o machado nas florestas cobertas de neve. A vida é o que se toca, e as mesmas sensações induzem aos mesmos sonhos. Lenhadores, vinicultores, camponeses ao me darem suas mãos tinham me dado também aquilo que havia passado por suas cabeças, pouco importa se tivessem sido ruivas ou loiras.

Certa vez, percorrendo uma estrada da Calábria, acabei perguntando a um velho pastor algumas indicações sobre uma encruzilhada que estava procurando e, dado que suas informações eram pouco claras, propus que ele me acompanhasse no carro até a encruzilhada em questão, para depois trazê-lo de volta ao lugar onde havíamos nos encontrado. O velho pastor aceitou com extrema desconfiança meu convite e, durante o percurso, olhava com crescente agitação pela janela, como que procurando alguma coisa muito importante. De repente gritou: “Onde está o campanário de Marcellinara? Não o vejo mais!”. Efetivamente, o campanário daquela vila havia desaparecido no horizonte e, com isso, o mundo familiar e o espaço doméstico desse arcaico pastor havia sido profundamente alterado, ele que, com esse desaparecimento, experimentava angustiosamente o desabamento de sua pequeníssima pátria cultura, com sua habitual paisagem que servia de cenário cotidiano a seus deslocamentos com o rebanho. Assim, não foi possível ir adiante na companhia de nosso pastor, e foi necessário levá-lo de volta ao ponto de partida, onde saudou com alegria o reaparecimento do campanário sumido. Esse é um exemplo extremo, e quase caricatural, da ligação com uma pátria cultural como condição de operacionalidade do mundo; mas essa ligação é bem conhecida do estudioso das civilizações e é particularmente evidente nas civilizações arcaicas.

O que pode acontecer quando numa situação colonial determinada corrente migratória muda repentinamente de habitat e passa de condições tribais de vida a uma civilização de tipo industrial já foi várias vezes apontado. Aqui, lembrarei do caso do qual se ocupou o etnólogo Jean Rouch em Accra, na Costa do Ouro, quando ainda havia o regime colonial britânico; um caso particularmente interessante, documentado, dentre outros, também por um documentário do próprio Rouch, que foi projetado alguns anos atrás no festival internacional do filme etnológico de Florença. Trata-se de uma corrente migratória dos negros Bambara do médio Níger – onde viviam da pesca e da agricultura – para as muito mais civilizadas regiões da costa. Os Bambara eram atraídos pelos fabulosos ganhos esperados na nascente sociedade industrial da costa onde, de fato, encontraram condições materiais de vida certamente muito melhores do que aquelas de sua pátria tribal. Exceto que na nova localidade se verificou um duplo fato: por um lado, todo o dispositivo cultural do qual dispunham os emigrantes na pátria para enfrentar os momentos críticos de suas vidas como agricultores e pescadores, isto é, seu panteão, seus ritos, suas cerimônias, não eram mais utilizáveis na nova localidade, ligados como eram a um habitat então abandonado, a momentos críticos que tinham perdido seu sentido e a relações tribais agora em dissolução; por outro lado, os Bambara eram acometidos por uma grave série de episódios traumatizantes em suas vidas de emigrados. O governador inglês, o exército, a polícia, a burocracia, os carros, os trens etc. constituíam um conjunto de elementos que eles não conseguiam inserir em nenhum horizonte cultural e que representavam o resultado terminal de um processo histórico ao qual eles permaneciam substancialmente estranhos. Nessa situação, muito rapidamente foram verificadas na comunidade Bambara de Accra uma série de desordens psíquicas muito graves, caracterizadas pela insurgência de impulsos inconscientes que não podiam ser nem controlados nem sublimados em determinados horizontes culturais. A comunidade em Accra foi assim afetada por uma verdadeira epidemia de desordens psíquicas, que alarmou as autoridades, ainda mais porque médicos e psiquiatras não conseguiam intervir de maneira eficaz na situação, que escapava aos quadros nosológicos da medicina e da psiquiatria europeias. Por sua vez, quem conseguiu resolver a situação foi um bambara, homem de grande experiência e que tinha maiores capacidades do que os outros emigrantes. Este tomou alguns elementos do velho dispositivo cultural – por exemplo, o altar cônico no centro de um descampado – modificando-os em função da nova situação. Dividiu assim o altar tradicional em várias seções, a mais alta delas hospedava o governador como nova divindade do panteão industrial e colonial, e depois, um de cada vez, o médico, o chefe da polícia, a mulher do médico etc.. Na base do altar cônico, que representava em certo sentido uma imagem mítica da situação colonial, estava o lugar das ofertas sacrificiais. Mas o que tornava particularmente interessante essa readaptação da religião tribal à nova situação eram os ritos e as cerimônias. Os bambaras, mantendo os velhos ritos de possessão característicos de sua tradição mágico-religiosa, deixavam-se então possuir pelas divindades do novo panteão. Assim, ao longo das cerimônias celebradas junto ao altar, eles eram possuídos pelo espírito do governador inglês, ou pelo chefe da polícia, ou pelo maquinista das ferrovias e usavam como fórmulas litúrgicas as fórmulas burocráticas que constituíam outro elemento traumatizante de sua nova vida na cidade. Desse modo, os traumas e os conflitos acumulados cotidianamente, e que antes explodiam em verdadeiras desordens psíquicas, agora eram levados a fluir à ordem ritual da possessão e recebiam um horizonte nas figurações míticas definidas. Assim, o novo dispositivo cultural pôde absorver uma função de reequilíbrio e reintegração, e as desordens psíquicas encontraram sua mais apropriada modalidade de controle.

Esse episódio singular estimula algumas observações. Sem dúvida, a ciência e a técnica do ocidente, nascidas de um ethos cultural particular que é fruto de uma longa história, constituem valores não apenas universais, mas universalizáveis. Todavia, são valores universalizáveis na medida em que entram com um ritmo crescente no processo de socialização e na medida em que a ciência e a técnica desenvolvem inteiramente o ethos adequado ao tipo de humanismo integral e de integral democracia que, certamente, ciência e técnica encerram, ao menos potencialmente. A tal propósito, não deve ser esquecido que um longo caminho ainda resta a ser percorrido, e que como há uma magia negra há também um modo de compreender a ciência como tecnicismo moralmente indiferente e, portanto, compatível, por exemplo, com o segredo atômico e com a guerra nuclear. O problema central do mundo de hoje se mostra, assim, na fundação de um novo ethos cultural não mais adequado ao campanário de Marcellinara, mas a todo o planeta Terra, que agora os astronautas contemplam das solidões cósmicas e que está, de fato, se tornando, ainda que por meio de contradições e resistências, nossa pátria cultural fundamentalmente unitária, com toda a riqueza de suas memórias e de suas perspectivas. Na medida em que esse novo ethos se tornará realmente operante e unificador, recolhendo numa consciente ecumenicidade de valores comuns a originária dispersão e divisão das gentes e das culturas, o mundo que não deve acabar sairá vitorioso da recorrente tentação do mundo que pode acabar, e o fim de um mundo não significará o fim do mundo, mas, simplesmente, o mundo de amanhã.       

 

 

Originalmente publicado em Il mondo di domani, organizado por Pietro Prini, Roma, Edizioni Abete, 1964. Encontro sobre o tema O mundo de amanhã, organizado pelo instituto de filosofia da Universidade de Perúgia. Republicado em Ernesto de Martino, Oltre Eboli. Ter saggi. Org. por Stefano de Matteis, Roma, Edizioni e/o, 2021, pp. 83-93.

Dentre as outras intervenções, estão: Robert Junk (em defesa da fantasia social); Gabriel Marcel (o sagrado na idade da técnica); Guido Calogero (o futuro e o eterno); Paul Ricoeur (perguntas à filosofia de amanhã); Octave Mannoni (perspectivas psicanalíticas); Umberto Eco (pesquisa interdisciplinar); Giulio Carlo Argan (o futuro das artes); Carlo Bo (literatura de amanhã); Arnold Gehlen (cristalização cultural). 

 

Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. 

Imagem: Campanário de Marcellinara

 



[1] Grosso modo, o ser-lançado ao mundo [N.T.]

terça-feira, 1 de março de 2022

Guerra & Demência (senil) - Franco "Bifo" Berardi

 


 

Franco "Bifo" Berardi

 

 Ucrânia, agonia do Ocidente & cia: o que acontece é uma geopolítica da psicose.


 

Aniquilar

Anéantir, o último livro de Houellebecq, é um volume de setencentas páginas, mas a metade seria o suficiente. Não é o melhor de seus livros, mas a mais desesperada representação, ao mesmo tempo resignada e raivosa, do declínio da raça dominante.

França profunda: uma família se reúne ao redor do velho pai de 80 anos que sofreu um derrame. Como interminável do velho patriarca que trabalhava para o serviço secreto. O filho Paul, que também trabalha para o serviço secreto, mas também para o Ministério da Economia, descobre ter um câncer terminal durante o coma interminável do pai. O outro filho, Aurélien, irmão de Paul, se suicida, incapaz de enfrentar uma vida na qual sempre se sentiu derrotado. Resta a filha, Cécile, católica integralista, mulher de um cartorário fascistóide que perdeu o trabalho mas que encontrou outro nos ambientes da direita lepenista.

A doença terminal é o tema desse romance medíocre: a agonia da civilização ocidental.

Não é um belo espetáculo, porque a mente branca não se resigna ao inelutável. A reação dos velhos brancos agonizantes é trágica.

O cenário em que essa agonia se desenrola é a França de hoje, culturalmente devastada por quarenta anos de agressividade liberal, um país espectral no qual a luta política se desenvolve no quadro mefístico de nacionalismo agressivo, racismo branco, rancor islâmico e integralismo economicista.

Mas o cenário também é o mundo pós-global, ameaçado pelo delírio senil da cultura dominadora mas em declínio: branca, cristã, imperialista.

 

Guerra / Agonia / Suicídio

Na fronteira oriental da Europa dois velhos brancos jogam uma partida na qual nenhum dos dois pode retroceder.

O velho branco americano voltou de sua derrota mais humilhante e trágica. Pior do que Saigon, Kabul permanece no imaginário global como a marca do caos mental da raça dominadora.

O velho branco russo sabe que seu poder se funda numa promessa nacionalista: trata-se de vingar a honra violada da Santa Mãe Rússia.

Quem dá um passo atrás, perde tudo.

Que Putin seja um nazista é algo óbvio desde quando terminou a guerra na Chechênia com o extermínio. Mas era um nazista muito bem quisto pelo presidente americano que, olhando-o nos olhos, disse ter entendido que era sincero. Muito bem quisto também pelos bancos ingleses, que estão cheios dos rublos rapinados pelos amigos de Putin depois do desmantelamento das estruturas públicas herdadas da União Soviética. Os hierarcas russos e os anglo-americanos eram amigos caríssimos quando se tratava de destruir a civilização social, a herança do movimento operário e comunista.

Mas a amizade entre assassinos não dura. De fato, para que serviria a OTAN se de fato a paz tivesse sido instaurada? E como acabariam os imensos lucros das empresas que produzem armas de destruição em massa?

A expansão da OTAN servia para renovar uma hostilidade à qual o capitalismo não podia renunciar.

Não existe uma explicação racional para a guerra ucraniana, porque ela é o momento culminante de uma crise psicótica do cérebro branco. Que racionalidade tem a expansão da OTAN que fornece armas aos nazistas poloneses, bálticos e ucranianos contra o nazismo russo? Por outro lado, Biden obtém o resultado mais temido pelos estrategistas americanos: levou Rússia e China a um abraço que há cinquenta anos Nixon havia conseguido romper.

Portanto, para nos orientarmos na guerra iminente não necessitamos de geopolítica, mas de psicopatologia: talvez necessitemos de uma geopolítica da psicose.

De fato, está em jogo o declínio político, econômico, demográfico e, por fim, psíquico da civilização branca, que não pode aceitar a perspectiva do exaurimento e prefere a destruição total, o suicídio, em vez da lenta extinção do domínio branco.

 

Ocidente / Futuro / Declínio

A guerra ucraniana inaugura uma histérica corrida aos armamentos, uma consolidação das fronteiras, um estado de violência crescente: demonstrações de força que, na realidade, são a marca do caos senil em que caiu o Ocidente.

Em 23 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas já tinham entrado em Donbass, Trump, ex-presidente e candidato à próxima presidência, julga ser Putin um gênio do peacekeeping. Sugere que os Estados Unidos deveriam mandar um exército similar à fronteira com o México.

Tentemos compreender o que quer dizer o obsceno Trump. Qual o núcleo de verdade de seu delírio? O que está em questão é o próprio conceito de Ocidente.

Mas quem é o Ocidente?

Se para a palavra “Ocidente” damos uma definição geográfica, então a Rússia dele não faz parte. Mas se pensamos o núcleo antropológico e histórico dessa palavra, então a Rússia é mais Ocidente do que qualquer outro ocidente.

O Ocidente é a terra do declínio. Mas é também a terra da obsessão pelo futuro. E as duas coisas são uma só, uma vez que para os organismos sujeitos à segunda lei da termodinâmica, como são os corpos individuais e sociais, futuro quer dizer declínio.

Assim, estamos unidos no futurismo e no declínio, isto é, no delírio de onipotência e na desesperada impotência, nós, ocidentais do Oeste, e os ocidentais da desmesurada pátria russa.    

Trump tem o mérito de dizer isso sem tantos rodeios: nossos inimigos não são os russos, mas os povos do sul do mundo, que exploramos por séculos e agora pretendem dividir as riquezas do planeta conosco, e querem imigrar para nossas terras. Nosso inimigo é a China, que humilhamos, a África, que depredamos. Não a branquíssima Rússia que faz parte do Grande Ocidente.

A lógica trompista se funda na supremacia da raça branca da qual a Rússia é o posto mais avançado e extremo.

A lógica de Biden, pelo contrário, é a defesa do mundo livre, que, claro, seria o seu, nascido de um genocídio, da deportação de milhões de escravos e fundado no ineliminável racismo sistêmico. Biden rompe o Grande Ocidente em prol de um Pequeno Ocidente sem Rússia, destinado a se despedaçar e a envolver em seu suicídio todo o planeta.

Tentemos definir o Ocidente como esfera de uma raça dominadora obcecada pelo futuro. O tempo tende a um impulso expansivo: o crescimento econômico, a acumulação, o capitalismo. Justamente essa obsessão pelo futuro alimenta a máquina do domínio: investimento de presente concreto (de prazer, de relaxamento muscular) em abstrato valor futuro.

Talvez poderíamos dizer, reformulando um pouco os fundamentos da análise marxiana do valor, que o valor de troca é justamente essa acumulação do presente (o concreto) em formas abstratas (como o dinheiro) que podem ser trocadas amanhã.

Essa fixação pelo futuro por nada é uma modalidade cognitiva natural do humano: grande parte das culturas humanas são fundadas numa percepção cíclica do tempo ou na dilatação insuperável do presente.

O Futurismo é a passagem para a plena autoconsciência, também estética, das culturas da expansão. Mas os futurismos são diversos e em alguma medida divergentes.

A obsessão pelo futuro tem implicações diversas na esfera teológico-utópica, própria da cultura russa, e na esfera técnico-econômica, própria da cultura euroamericana.

O Cosmismo de Fedorov e o Futurismo de Maiakovski têm um sopro escatológico que falta tanto no fanatismo tecnocrático marinettiano quanto em seus epígonos americanos como Elon Musk. Talvez seja por isso que cabe à Rússia terminar a história do Ocidente, e aqui estamos nós.

 

O nazismo está por toda parte

Depois do limiar pandêmico, o novo panorama é a guerra que opõe o nazismo ao nazismo. Gunther Anders havia pressentido, em seus escritos dos anos 1960, que a carga niilista do nazismo de fato não havia sido exaurida com a derrota de Hitler, e que voltaria à cena do mundo em razão do agigantamento da potência técnica que provoca um sentimento de humilhação da vontade humana, reduzida à impotência.

Agora vemos que o nazismo reemerge como forma psicopolítica do corpo demente da raça branca, que reage raivosamente a seu irrefreável declínio. O caos viral criou as condições de formação de uma infraestrutura biopolítica global, mas também acentuou, até o pânico, a percepção de ingovernabilidade da proliferação caótica da matéria que perde a ordem, que se desintegra e morre.

O Ocidente obliterou a morte porque não é compatível com a obsessão pelo futuro. Obliterou a senescência porque não é compatível com a expansão. Mas agora o envelhecimento (demográfico, cultural e também econômico) das culturas dominadoras do norte do mundo se apresenta como um espectro que a cultura branca não pode nem mesmo pensar, imagina então se poderia aceitar.

Eis, portanto, o cérebro branco (tanto o de Biden e quanto o de Putin) entrando numa crise furiosa de demência senil. O mais desenfreado de todos, Donald Trump, diz uma verdade que ninguém quer escutar: Putin é nosso melhor amigo. Certamente é um assassino racista, mas nós não somos menos.

Biden representa a raiva impotente que têm os velhos quando se dão conta do declínio das forças físicas, da energia psíquica e da eficácia mental. Agora, o exaurimento está em fase avançada, a extinção é a única perspectiva tranquilizadora.

Poderá a humanidade salvar-se da violência exterminadora do cérebro demente da civilização ocidental – russa, europeia e americana – em agonia?

De qualquer forma que evolua a invasão da Ucrânia – que se torne uma ocupação estável do território (improvável) ou que se conclua com uma retirada das tropas russas depois de ter destruído o aparato militar que os euroamericanos forneceram a Kiev (provável) –, o conflito não pode ser resolvido com a derrota de um ou de outro dos dois velhos patriarcas. Nenhum deles pode concordar em desistir antes de ter vencido. Por isso, essa invasão parece abrir uma fase de guerra tendencialmente mundial (e tendencialmente nuclear).

A questão que por ora se mostra sem resposta é relativa ao mundo não ocidental, que por alguns séculos sofreu a arrogância, a violência e a exploração de europeus, russos e, por fim, americanos.

Na guerra suicida que o Ocidente desatou contra o Outro Ocidente as primeiras vítimas são aqueles que sofreram as consequências do delírio dos dois ocidentes, aqueles que não queriam nenhuma guerra, mas devem sofrer seus efeitos.

A guerra final contra a humanidade começou.

A única coisa que podemos fazer é desertar, transformar coletivamente o medo em pensamento, e nos resignar com o inevitável, porque só assim, nos contratempos, pode acontecer o imprevisível: a paz, o prazer, a vida.  

 

 

Franco "Bifo" Berardi, Guerra & demenza (senile), trad.: Vinícius N. Honesko. Originalmente publicado em: https://not.neroeditions.com/guerra-demenza-senile/