segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Violência e esperança no último espetáculo - de Giorgio Agamben


 

 Giorgio Agamben

Em novembro de 1967, quando Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo, a transformação da política e de toda a vida social numa fantasmagoria espetacular ainda não havia atingido a figura extrema que hoje se tornou para nós perfeitamente familiar. Por isso é ainda mais notável a implacável lucidez de seu diagnóstico.

“O capitalismo, em sua forma última – assim ele argumenta, radicalizando a análise marxiana do caráter de fetiche da mercadoria, naqueles anos tolamente desconsiderada – apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos, na qual tudo o que era diretamente vivido se distanciou numa representação”.

            Todavia, o espetáculo não coincide simplesmente com a esfera das imagens ou com aquilo que hoje chamamos de mídia: ele é “uma relação social entre pessoas, mediada através das imagens”, a expropriação e a alienação da própria sociabilidade humana. Ou melhor, com uma fórmula lapidar: “o espetáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem”.

            Por isso mesmo, no entanto, o espetáculo é apenas a pura forma da separação: onde o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência prática do homem se destaca de si mesma e se apresenta como um mundo em si. É na figura desse mundo separado e organizado por meio das mídias, que nas formas do Estado e da economia se compenetram, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre a vida social.

            Depois de ter falsificado o conjunto da produção, ela agora pode manipular a percepção coletiva e tomar posse da memória e da comunicação social para transformá-las numa única mercadoria espetacular, na qual tudo pode ser colocado em discussão, exceto o próprio espetáculo, que, em si, diz apenas: “aquilo que aparece é bom, e o que é bom aparece”.

            Em maio de 1988, Debord publicou um Comentário à sociedade do espetáculo, que acrescenta desenvolvimentos importantes às suas análises precedentes. Se antes ele havia distinguido duas formas de sociedade espetacular – a concentrada, que tinha seu modelo na Rússia stalinista e na Alemanha nazista; e a difusa, correspondente aos Estados Unidos e às democracias ocidentais –, agora ele mostra que, nos vinte anos subsequentes, impôs-se em escala planetária um terceiro modelo, para o qual Itália e França serviram como laboratório, definido por ele de “espetáculo integrado”.

            “O espetáculo integrado se manifesta ao mesmo tempo no estado concentrado e no estado difuso e, a partir dessa frutífera unificação, conseguiu empregar ao máximo uma e outra qualidade. Mas seu modo de aplicação se transformou. Considerando-se o aspecto concentrado, o centro dirigido agora se tornou oculto: nele não se situa mais nem um início reconhecido nem uma clara ideologia. Considerando-se o aspecto difuso, o influxo do espetáculo jamais havia determinado a tal ponto a quase totalidade dos comportamentos e dos objetos da produção social.

            O sentido último do espetáculo integrado é, com efeito, que ele se integrou na própria realidade à medida que dela falava: e que a reconstrói assim como dela fala, de modo que esta não está mais diante dele como algo estranho. Quando o espectador era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava: quando era difuso, dele escapava uma pequena parte; hoje, mais nada. O espetáculo se misturou a toda realidade permeando-a. Como era previsível em teoria, a experiência prática da realização desenfreada da vontade da razão mercantil mostra, rapidamente e sem exceções, que o tornar-se-mundo da falsificação era também um tornar-se-falsificação do mundo.

            Excetuando-se uma herança ainda consistente, mas destinada a se reduzir cada vez mais, de livros e edifícios antigos que, de resto, são cada vez mais frequentemente selecionados e colocados em perspectiva de acordo com a conveniência do espetáculo, não existe mais nada, na cultura e no mundo, que não tenha sido transformado e declinado segundo os meios e os interesses da indústria moderna”

            É difícil, para nós que vivemos os últimos vinte anos da história italiana, não subscrever essas análises. Isso pois é certo que, como parece sugerir Debord, a Itália foi o laboratório em que, enquanto o terrorismo formava o espetáculo de cobertura que monopolizava toda atenção, foi tentada e efetuada a passagem das democracias ocidentais para a última fase de seu desenvolvimento histórico. Jamais – nem mesmo nos anos 1950, quando os estados europeus, eliminados o fascismo e o nazismo, dedicaram-se com zelo a prosseguir sua obra de outro modo – uma tão grande massa de falsificação se concentrou num tempo tão breve em todos os aspectos da vida social.

            No espaço de poucos anos, ideologias, confissões religiosas, sindicatos, partidos políticos, jornais, dentre os quais existiam diferenças sensíveis e que representavam tradições opostas, entraram em acordo, como que seguindo as instruções de um modelo invisível, para repetir com as mesmas palavras o mesmo discurso sobre os mesmíssimos temas. E jamais, em algum regime totalitário, o discurso público foi tão homogêneo e, essencialmente, consentido como na Itália desses últimos anos, onde tudo se discutiu desde que não se pensasse em nada; e jamais, em nenhuma ditadura, os intelectuais, reduzidos com boa vontade ao papel de espectadores dos especialistas, foram mais solícitos em sua tarefa de obter consenso e tranquilizar por meio de ideias confusas. Isso pois, se o estado espetacular é o estágio extremo na evolução da forma Estado, em direção à qual, quase como que levados por uma força fatal, parecem se mover hoje todos os estados do mundo, o espetáculo, no sentido estrito de circulação midiática da informação, serve para impossibilitar que os problemas decisivos sejam colocados de modo claro e que os cidadãos disponham dos elementos para se formar uma opinião não contraditória sobre eles.

            Nesse sentido, os livros de Debord constituem uma das poucas descrições de nosso tempo à altura do problema: e, num registro de todo diverso, a única análise que possa ser comparada, em rigor e novidade, àquela que, exatamente quarenta anos antes, Heidegger havia conduzido nos parágrafos 25-38 de Ser e tempo. Só que a dimensão que Heidegger chamava de “impropriedade”, Uneigentlichkeit, não convive mais simplesmente com o ser-próprio, Eigentlich, do homem, mas, tornada autônoma, substituiu inteiramente este, tornando-o impossível.

            Assim, o “espetáculo” de Debord pode ser aproximado, sem se forçar muito, à fase extrema do desenvolvimento da técnica que Heidegger chama de Gestell, e sobre a qual diz ser o maior perigo e, ao mesmo tempo, o pressentimento da apropriação última do homem.

            Se isso é verdade, de que maneira hoje o pensamento pode acolher a herança de Debord? Dado que é claro que o espetáculo é a linguagem, a própria comunicatividade ou o ser linguístico do homem. Isso significa que a análise marxiana deve ser integrada no sentido que o capitalismo – ou, caso se queira em outros termos, o processo que hoje domina a história mundial – não era voltado apenas à expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística ou comunicativa do homem, daquele Logos no qual um fragmento de Heráclito identifica o “Comum”.

            A forma máxima dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política que nós vivemos. Isso significa também que, no espetáculo, é nossa própria natureza linguística que em nós é invertida. Por isso – justamente porque a ser expropriada é a possibilidade de um bem comum – a violência do espetáculo é tão devastadora; mas, pela mesma razão, o espetáculo, em cuja forma a humanidade parece estar cegamente indo ao encontro da própria destruição, contém também uma possibilidade positiva extrema, que a humanidade de forma alguma deve deixar escapar.

            O estado espetacular, com efeito e apesar de tudo, permanece um estado que, como todo estado, funda-se, como mostrou Badiou, não na relação social, da qual seria expressão, mas em sua dissolução, que proíbe. Em última instância, o estado pode reconhecer qualquer reivindicação de identidade, até mesmo (e a história das relações entre estado e terrorismo em nosso tempo é uma eloquente confirmação disso) a de uma identidade estatal em seu próprio interior. Mas que das singularidades se façam comunidades sem reivindicação de uma identidade, que humanos co-pertençam sem uma representável condição de pertencimento – o fato de serem italianos, operários, católicos, terroristas – é algo que o estado não pode de maneira alguma tolerar.

            Ainda assim, é o próprio estado espetacular, enquanto nulifica e esvazia de conteúdo toda identidade real, a produzir massivamente em seu seio singularidades que não são mais caracterizadas por nenhuma identidade social nem por qualquer real condição de pertencimento: singularidades verdadeiramente quaisquer.

            Isso pois é certo que a sociedade em que nos foi dado viver é também aquela em que todas as identidades sociais se dissolveram, na qual tudo aquilo que por séculos constituiu a verdade e a mentira das gerações que se sucederam sobre a terra já perdeu qualquer significado. Na pequena burguesia planetária, em cuja forma o espetáculo realizou de forma paradoxal o projeto marxiano de uma sociedade sem classes, as diversas identidades que marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e são acolhidas numa fantasmagórica vacuidade.

            Por isso, se é lícito avançar uma profecia sobre a política que vem, esta não será mais a luta pela conquista ou o controle do estado por parte de novos ou velhos sujeitos sociais, mas a luta entre o estado e o não-estado (a humanidade), disjunção incolmatável das singularidades quaisquer e da organização estatal.

            Isso não tem nada a ver com a simples reivindicação do social contra o estado, que por muito tempo foi o motivo comum de movimentos de contestação em nosso tempo. As singularidades quaisquer numa sociedade espetacular não podem formar uma societas, porque não dispõem de nenhuma identidade para fazer valer, de nenhuma ligação social para fazer reconhecer. Tanto mais implacável é o contraste com um estado que nulifica todos os conteúdos reais, mas para o qual um ser que fosse radicalmente privado de qualquer identidade representável seria, apesar de todas as declarações vazias sobre a sacralidade da vida e sobre os direitos do homem, simplesmente inexistente.

            Essa é a lição que um olhar menos desatento poderia ter retirado dos fatos de Tiananmen. O que mais espanta, de fato, nas manifestações do maio chinês é a relativa ausência de conteúdos determinados e de reivindicações. Democracia e liberdade são noções demasiado genéricas para constituir um objeto real de conflito, e a única demanda concreta, a reabilitação de Hu Yao Bang, foi prontamente acolhida. Ainda mais inexplicável se mostra a violência da reação estatal.

            É provável, todavia, que a desproporção tenha sido apenas aparente e que os dirigentes chineses tenham agido, de seu ponto de vista, com perfeita lucidez. Em Tienanmen o estado encontrou-se diante daquilo que não pode nem quer ser representado e que, todavia, apresenta-se como uma comunidade e uma vida comum. E isso independentemente do fato de que aqueles que se encontram na praça fossem efetivamente conscientes disso. Que o irrepresentável exista e faça comunidade sem pressupostos nem condições de pertencimento (como uma multiplicidade inconsistente, nos termos de Cantor) é precisamente a ameaça com a qual o estado não está disposto a sofrer.

            A singularidade qualquer, que quer apropriar-se do pertencimento mesmo, de seu próprio ser na linguagem, e que, por isso, declina toda identidade e toda condição de pertencimento, é o novo protagonista, não subjetivo nem socialmente consistente, da política que vem. Onde quer que essas singularidades se manifestem pacificamente seu ser comum, aí haverá uma Tiananmen e, cedo ou tarde, apareceram os canhões.

            Quanto a nós, o que quer que aconteça, podemos apenas repetir com Debord as palavras de Marx a Ruge: “Certamente não se pode dizer que eu tenha em muita estima a presente época; mas se não me desespero nela é porque sua situação desesperada me enche de esperança”.

 

Giorgio Agamben, Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo, in. Giorgio Agamben et. al, I Situazionisti, Roma, Manifestolibri, 1991, pp. 11-17.

Trad.: Vinícius N. Honesko   

 

Imagem: Praça da Paz Celestial (Tiananmen), junho de 1989.

sábado, 9 de setembro de 2023

A herança de nosso tempo - Giorgio Agamben



Giorgio Agamben


A meditação sobre a história e a tradição que Hannah Arendt publica em 1954 tem o título, certamente não casual, Entre passado e futuro. Tratava-se, para a filósofa judia-alemã há quinze anos refugiada em Nova York, de se interrogar sobre o vazio entre passado e futuro que havia sido produzido na cultura do Ocidente, isto é, sobre a ruptura já irrevogável da continuidade de qualquer tradição. É por isso que o prefácio ao livro se abre com o aforisma de René Char Notre héritage n’est précédé d’aucun testament. Ou seja, o que estava em questão era o problema histórico crucial da recepção de uma herança que não é mais, de modo algum, possível de transmitir. Cerca de vinte anos antes, Ernst Bloch, em exílio em Zurique, havia publicado, sob o título A herança de nosso tempo, uma reflexão sobre a herança que ele buscava recuperar vasculhando nos subterrâneos e nos depósitos da cultura burguesa já em desintegração (“a época está em putrefação e ao mesmo tempo está parindo” é a insígnia que abre o prefácio do livro). É possível que o problema de uma herança inacessível ou praticável apenas através de caminhos difíceis e aberturas meio escondidas que os dois autores, cada um a seu modo, suscitam, não seja de todo obsoleto, aliás, pode nos dizer respeito de modo íntimo – tão intimo que às vezes parecemos nos esquecer dele. Também nós fazemos experiência de um vazio e de uma ruptura entre passado e futuro, também nós, numa cultura em agonia, temos que procurar se não uma dor do parto, ao menos algo como uma parcela de bem que sobreviveu ao esfacelamento.

Uma busca preliminar sobre esse conceito deliciosamente jurídico – a herança – que, como com frequência acontece em nossa cultura, se expande além de seus limites disciplinares até envolver o próprio destino do Ocidente, não será, portanto, inútil. Como os estudos de um grande historiador do direito – Yan Thomas – mostram com clareza, a função da herança é a de assegurar a continuatio dominii, isto é, a continuidade da propriedade dos bens que passam do morto ao vivo. Todos os dispositivos que o direito concebe para suprir o vazio que corre o risco de ser produzido com a morte do proprietário não têm outro objetivo senão garantir, sem interrupções, a sucessão na propriedade.

Assim, talvez a herança não seja o termo correto para pensar o problema que tanto Arendt quanto Bloch tinham em mente. Dado que na tradição espiritual de um povo algo como uma propriedade simplesmente não tem sentido, nesse âmbito uma herança como continuatio dominii não existe nem pode de forma alguma nos interessar. Aceder ao passado, conversar com os mortos só é possível ao se quebrar a continuidade da propriedade, e é no intervalo entre passado e futuro que todo indivíduo deve necessariamente se situar. Não somos herdeiros de nada e de lugar nenhum recebemos herança, e é só sob tal condição que podemos relançar a conversa com o passado e com os mortos. Com efeito, o bem é, por definição, adespótico e inapropriável, e a obstinada tentativa de agarrar a propriedade da tradição é o que define o poder por nós refutado em todos os âmbitos, tanto na política quanto na poesia, na filosofia como na religião, nas escolas como nos templos e tribunais.

31 de julho de 2023.



Giorgio Agamben, L’eredità del nostro tempo, disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-u2019eredit-4-el-nostro-tempo?fbclid=IwAR2DZaV3G3OYN9WJdQikE5fgAS38B5fXEg2b8wklvfrL0M09r9YPi3HvEmo Trad.: Vinícius N. Honesko.

Imagem: Tiziano Veccelio. Três idades do homem. 1513, National Gallery of Edingurgh, Escócia.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O escritor é como um ladrão de luzes – Giorgio Agamben


Não sei se a arte tem um objetivo, mas acredito que sua grandeza depende da ligação que ela assume com a realidade. A cegueira da consciência convencional faz com que a vida escorra para fora da vida e acabe por substituir o real pelo filtro do uso. Van Gogh, em uma das cartas a Théo, escreve que com frequência os homens vivem prisioneiros “dans je ne sais quelle cage horrible, horrible, três horrible”[1]. É desde essa cela que a arte nos deve salvar, e se não o faz, se não se coloca diante da realidade de modo absolutamente autêntico, mesmo que seja guiada por uma inteligência excepcional, essa inteligência jamais será daquela espécie que Dostoiévski definia como primária, e a obra que dela surgirá não será uma obra de arte. Continua Van Gogh em sua carta: “Sais-tu ce qui fait disparaître la prison? C’est toute affection profonde, sérieuse. Être amis, être frères, aimer...”[2] Há um poema de Elsa Morante no qual se exprime um conceito análogo: “Só quem ama conhece... Só a quem ama o Diverso ilumina seus esplendores”. Mas a arte faz algo mais do que o amor, não se limita a descobrir a realidade, mas penetra mais profundamente nela.

Não é sem razões que, devendo falar de um livro de Elsa Morante, fizemos essas considerações. Elsa Morante é, talvez, em nosso século, a escritora que mais teve consciência dessa tarefa suprema da arte, e que a ela se manteve constantemente fiel mesmo passando pelo desespero mais profundo, quando a vida chegou fatalmente a encontrar “o risco mortal da consciência”. Os contos que compõe essa coletânea (exceto os três últimos, dentre os quais O xale andaluz, que dá título ao volume) foram escritos antes de 1948, ano em que saiu Mentira e sortilégio. Mas não acreditem, por isso, que O xale andaluz apresenta uma Morante menor. Não existe uma Morante menor, ao menos nos volumes que ela publicou: operas menores certamente não são esses contos, assim como não o eram os poemas de Álibi, aos quais a crítica não prestou suficiente atenção. A profissão de fé que se lê em Aventura “Para ti, meu santo capricho, rosto divino, sem armas e sem bússola parti... Para amores difíceis eu nasci” jamais foi desmentida nem faltou a consciência da missão da arte. Existem, no Xale andaluz, dois contos (o primeiro, O ladrão de luzes, e o penúltimo, Dona Amália) que são como os dois polos extremos do mundo de Morante, as duas faces de sua fé. Há algo de profundamente poético na imagem de Jusvin, o guardião do templo que é encarregado de manter acesas as lamparinas dedicadas aos mortos e que uma noite decide apagá-las para lucrar no preço do óleo. “Uma noite, ele tinha acabado de entrar quando vi as luzes uma por uma se apagar; e ele saiu, cauteloso, com seu apagador, deixando atrás de si uma imensa escuridão”. Jusvin é o obscuro símbolo do artista e do homem moderno; como Jusvin, o artista moderno é um ladrão de luzes, seu delito é o preço que ele deve pagar à “imensa escuridão” que envolve a humanidade. Se Jusvin é a tragédia da arte e da morte, Dona Amália é, pelo contrário, o esplendor da arte e da vida. Seu segredo está nisto: “que ela, diferentemente das pessoas comuns, nunca adquiria, em relação aos aspectos (mesmo os mais costumeiros) da vida, o hábito do qual nascem a indiferença e o tédio”.

É para esse ideal que tende o desejo do homem, e, quando não pode atingi-lo, ele é similar ao Dom Miguel que, tendo perdido Dona Amália, se retira num castelo e morre de melancolia: “se não podia gozar de suas riquezas junto dela, todas elas lhe pareciam areias do deserto”.

Mas Dona Amália e o ladrão de luzes são também duas distintas imagens da vida, da qual a primeira decai e eternamente renasce da segunda nos acontecimentos da existência individual. E os contos de Elsa Morante, como seus romances, são contos de educação (educação do homem para si mesmo, para a vida e para a morte). Mas Andrea Campese, que passa por experiências infantis e viris, é algo mais do que uma representação da mudança de visão que se segue à saída da infância. Não é, talvez, também a mãe, Giuditta, que renuncia a uma miragem para aceitar seu novo e mais real destino? A correspondente mudança de Andrea aparece sobretudo como um dos mais poéticos símbolos (e, por isso, com frequência sua história vai além de seus eventos particulares) da condição humana na literatura contemporânea, a imagem do Eu envolto no véu de Maia diante de um mundo de fantasmas e de aparências:

 

Um triste, arrogante herói

Envolvido por um xale andaluz

 

Resta dizer algo do estilo de Elsa Morante, aquele estilo que, creio, se mostra como um mistério extraordinário para aqueles que não conseguem amá-lo. Seu realismo é como que animado por um íntimo processo de metamorfoses num abissal irrealismo sem fundo. Talvez a melhor definição de seu estilo tenha sido dada pela própria autora, quando escreveu na dedicatória de Mentira e sortilégio: “a agulha é fervilhante, a tela é fumaça”. Chama a atenção a precisão com que são descritos lugares e objetos; e, todavia, aqueles lugares e objetos não são o protocolo do real, mas a fundação de uma nova realidade. Falou-se do sentido do demoníaco de Elsa Morante: mas eu acredito que seria preciso falar com mais propriedade de sentido da demonicidade. A percepção da vida das coisas, do demônio que está nelas, é também a característica do fabular, um termo de comparação que vem espontaneamente ao ler esses contos (pensemos em A avó e em O jogo secreto, e no próprio xale andaluz). Mas o segredo do estilo de Elsa Morante está em sua relação com o mundo, que é demasiado complexa para este breve comentário, mas que certamente lembra a definição que Spinoza deu da benevolência como amor nascido da piedade e piedade nascida do amor.

Foi dito acima que Jusvin e Dona Amália são os dois símbolos extremos da condição do artista e do homem moderno. Mas num outro conto aproxima-se de uma figura que é de algum modo intermediária entre as duas e que talvez exprima a verdadeira mensagem de Elsa Morante. Em Soldado siciliano, enquanto a protagonista descansa numa cabana onde encontrou hospitalidade para a noite, de repente entra um soldado. Ele tem em mãos uma lâmpada de mineiro e a protagonista os faz observar “que iria acordar a todos com sua luz cegante”. O relato que ele faz em dialeto siciliano se abre com as palavras: “meu nome é Gabriele”. O que ele busca é “ser atingido, um dia ou outro”.

Não é fácil esquecer da aparição desse soldado que vaga pelo mundo com uma lanterna de mineiro, esperando a morte. É uma imagem estranhamente irmã e ao mesmo tempo antitética àquela de Andrea Campese, que corre de noite em direção do estábulo envolvido pelo xale andaluz. Diante desse dom de consciência de Elsa Morante, vêm espontaneamente aos lábios as palavras de um de seus poemas: 

 

Tudo o que te pertence, ou que de ti provém,

é cheio de uma graça fabulosa.   

 

 

Giorgio Agamben, Lo scrittore è come um ladro di lumi, originalmente publicado no jornal “Paese sera”, em 10 de janeiro de 1964. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko



[1] N.T.: em não sei qual jaula horrível, horrível, muito horrível.

[2] N.T.: Você sabe o que faz a prisão desaparecer? É toda afecção profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar...

terça-feira, 16 de maio de 2023

A guerra na Galícia - Giorgio Agamben

 


 

Havia no centro da Europa regiões que foram apagadas pela carta geográfica. Uma destas – não é a única – é a Galícia, que hoje coincide em boa parte com o território onde há mais de um ano se combate uma lamentável guerra. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a Galícia era a província mais distante do Império Austro-húngaro, nos confins com a Rússia. Com a dissolução do império Habsburgo, os vencedores, certamente não menos iníquos do que os vencidos, entregaram-na à renascida Polônia, como a Bucovina, que com ela fazia fronteira, fora também caprichosamente anexada à Romênia. Os confins, a cada vez redesenhados com lápis e borracha nos mapas geográficos pelos poderosos, saem do tempo em que são encontrados, mas é provável que a Galícia não voltará a reaparecer nos inventários da política europeia. Muito mais do que a cartografia, o que nos importa é o mundo que naquela região existia – isto é, os humanos que no Königreich Galizien und Lodomerien (esse era o nome oficial da província) respiravam, amavam, ganhavam a vida, choravam, tinham esperanças e morriam. Pelas estradas de Lemberg, Tarnopol, Przemysl, Brody (pátria de Joseph Roth), Rzeszow, Kolomea caminhava um conjunto variado de rutenos (assim então eram chamados os ucranianos), poloneses, judeus (em algumas cidades quase a metade da população), romenos, ciganos, hutsuls (que entre 1918 e 1919 constituíram uma república independente de breve duração). Cada uma dessas cidades tinha um nome diferente, a depender da língua dos habitantes que nelas conviviam, em cada uma delas as igrejas católicas das esquinas se transformavam em sinagogas e estas, por sua vez, em igrejas ortodoxas e igrejas católicas orientais. Não era uma região rica, aliás, os funcionários da Kakânia a consideravam a mais pobre e atrasada do império; era, todavia, justamente pela pluralidade de suas etnias, culturalmente viva e generosa, com teatros, jornais, escolas e universidades em várias línguas e um florescimento de escritores e músicos que temos ainda que aprender a conhecer. É esse mundo que, de um dia a outro, foi política e juridicamente aniquilado em 1919, e a é essa multiforme e intrincada realidade que a ocupação nazista (1941-1944) e depois a soviética algumas décadas depois deram o golpe de misericórdia. Mas ainda antes de se tornar parte do Império Austro-húngaro, a terra que levava o nome de Halyč ou Galícia (segundo alguns, de origem celta, como a Galícia espanhola), e que no fim do medievo estava sob o domínio húngaro com o nome de principado de Galícia e Volínia, de quando em quando era contestada pelos cossacos, russos e poloneses, até que a grã-duquesa Maria Teresa da Áustria se aproveitou da primeira divisão da Polônia, em 1772, para anexá-lo a seu império. Em 1922, o território foi anexado pela União Soviética, com o nome de República socialista soviética ucraniana, da qual se separou em 1991 abreviando o próprio nome como República Ucraniana.

É tempo de deixar de crer nos nomes e nos confins marcados nos mapas e de se perguntar sobretudo sobre o que aconteceu, o que aconteceu daquele mundo e daquelas formas de vida que acabamos de evocar. Como sobrevivem – se sobrevivem – além dos infames registros das burocracias estatais? E a guerra agora em curso não é, mais uma vez, o fruto do esquecimento daquelas formas de vida e a odiosa e letal consequência daqueles registros e daqueles nomes?

 

Giorgio Agamben,

24 de abril de 2023.

 

Original disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-guerra-galizia

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko