segunda-feira, 14 de junho de 2021

Por uma filosofia do testemunho - Giorgio Agamben

 


Giorgio Agamben

 

 

Este especial sobre o filósofo torinense é aqui apresentado por Agamben, que repercorre sua linha de “pensamento inatual” a partir de um escrito que ficou engavetado. Para Carchia, a filosofia, agora reduzida a ancilla scientiae, deve ser inseparável da instância viva de seu exercício.

 

O texto cujo breve excerto aqui publicamos havia sido originalmente concebido como uma contribuição para uma história do pensamento do século XX. Inédito por razões que ignoramos, ele se apresenta agora como uma suma testamentária do pensamento de Carchia (que morreria três anos depois, isto é, justamente, em 6 de março de dez anos atrás [2000]) e, ao mesmo tempo, como uma lúcida e originalíssima ambientação crítica da antropologia do século XX. Em cada um dos cinco densos capítulos que o compõe, o autor deixa, com efeito, florescer seu pensamento de forma contextual e, por assim dizer, como contraponto à releitura de uma das principais correntes da filosofia do século XX. Assim, no primeiro capítulo (O homem, uma testemunha), a tese da filosofia como testemunho é enunciada por meio de uma crítica da concepção que reduz a filosofia a "uma simples instância metódica”. É notório que, diante do desenvolvimento e triunfo da ciência moderna, a filosofia, ao menos a partir do neokantismo, realizou um recuo estratégico nas posições da teoria do conhecimento e suas condições de possibilidade. A fragilidade do bastião no qual a filosofia acreditara se entrincheirar agora está evidente para todos; reduzida à condição de ancilla scientiae, ela agora se encontra servindo a um ladrão que, diferentemente da teologia, de modo algum precisa de seus serviços. É contra esse persistente preconceito epistemológico que Carchia propõe sua ideia do pensamento como testemunho, inseparável da “instância viva de seu exercício" e do encontro e choque com "um evento que infinitamente o supera”. No mesmo gesto, contra toda sublimação do testemunho, Carchia lembra de que o verdadeiro testemunho não pretende se identificar com aquilo sobre o que testemunha, que “há um pudor do testemunhar, que consiste em manter a dissimetria e a diacronia com o absoluto”.

No segundo capítulo (Mito e existência), o contraponto crítico se joga entre o mito e a ambígua relação que a modernidade entretém com ele. Na perspectiva de Carchia, o mito é apenas a outra face do problema do testemunho, aliás, “a única figura ou exposição do testemunho acessível ao homem”. Justamente por isso, o mito autêntico está preso entre duas consciências: a que indica que a verdade para o homem é sempre um acontecer, que necessariamente se dá por meio de narrativas, metáforas e símbolos e, ao mesmo tempo, a “consciência de que narrativas, metáforas e símbolos não são a verdade". Longe de acontecer como figura e verdade de um passado arquetípico, o mito é, antes, experiência do perene caráter genitivo do pensamento, lugar não de uma dialética com o passado, mas de uma epifania do presente.

Contra essa experiência testemunhal do mito está a concepção do mito da modernidade, a qual (por um lado, na forma da desmitização e da ciência do mito e, por outro, na busca de uma “nova mitologia”), na verdade, é apenas a sombra produzida pela razão iluminista. De fato, segundo Carchia, racionalidade técnico-científica e irracionalidade mítica se espelham e remetem uma a outra num círculo vicioso em que elas se legitimam e, ao mesmo tempo, se deslegitimam reciprocamente. A afirmação da consciência moderna nasce, nesse sentido, de uma tortuosa “conjugação entre iluminismo e mitologia", na qual, como em nossas universidades, disciplinas retórico-humanistas e ciências da natureza podem continuar a fingir ignorar-se respeitosa e mutuamente apenas porque sabem que, na realidade, se tornaram os dois dóceis instrumentos do domínio de uma mesma subjetividade antropocêntrica. Para Carchia, por outro lado, mito é “reconhecimento, ao mesmo tempo, da raiz natural do humano e do caráter ultra-humano do espírito”, consciência de que o humano só pode se dar num campo de forças no qual “a natureza dá a energia ao espírito e o espírito da voz à natureza".

Não é possível aqui percorrer mais uma vez as particularidades da argumentação dos dois capítulos seguintes, A arte como figura do ultra-humano e Moral e moralística. Todavia, basta lembrar que Carchia declina sua crítica da estética e da moral do século XX retomando os conceitos guias do livro que permanece, talvez, como sua obra-prima precoce, Da aparência ao mistério (1983, o autor tinha trinta e seis anos): a aparência, lançada contra certa leitura da arte romântica, e o mistério, cifra da “fenomenologia do aparecer" dos moralistas clássicos e barrocos, são evocados em contraponto ao “totalitarismo da razão histórica” que, de Heidegger à teoria crítica, visa a liquidar a dimensão do homem natural, com seus hábitos e estilos de vida. É significativo que Carchia conclua seu reconhecimento crítico da antropologia do século XX com as mesmas páginas que fecham O amor do pensamento, livro publicado poucos dias antes de sua morte, em cujo lacônico prefácio havia definido sua intenção suprema como uma “filosofia do amor". Aí, Carchia parte de uma crítica rigorosa da definição da modernidade (comum tanto a Blumenberg e a Löwith como, em certa medida, a Derrida e ao pós-modernismo) como ruptura do nexo cristão de apocalipse e história. Contra essas concepções, definidas por uma mesma perda de espessura do tempo histórico, Carchia faz valer a necessária implicação mútua de história e apocalíptica. “A história", escreve, “é história apenas porque tem um fim, porque tende a um fim”, do qual pode receber "luz"; não termina, simplesmente, mas "começa a terminar", mantendo assim vivo o nexo entre apocalipse e história. Mais uma vez, entre a "euforia gnóstica" do fim e a melancolia desconstrucionista do diferimento infinito, Carchia inscreve seu gesto característico, que conjuga num milagroso equilíbrio o que parece impossível de manter unido: um platonismo anárquico que desemboca na contemplação da aparência e uma sóbria apocalíptica que perdura amorosamente na memória daquilo que não pode senão acabar.   

 

 

Texto de Giorgio Agamben publicado no suplemento Alias, de Il Manifesto, de 06 de março de 2010 (também disponível em: https://www.quodlibet.it/recensione/814)

 

Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.

domingo, 13 de junho de 2021

Um possível autorretrato de Gianni Carchia - Giorgio Agamben


 

 

Giorgio Agamben

 

Compreende-se mal o gesto mais específico do pensamento de Gianni Carchia caso se inscreva sua intenção apenas no interior da Estética – isto é, da disciplina acadêmica que coube a ele ensinar. Em seu caso, todavia, tampouco é possível prescindir dessa inscrição, simplesmente. Pelo contrário, como ele mesmo observou certa vez ao escrever que o cerne da Estética está onde não suspeitaríamos de procurá-lo, Carchia desde o início deslocou sua disciplina para uma espécie de pré-histórica terra de ninguém entre o distanciamento do mundo mítico e o nascimento da literatura. Nessa zona – crepuscular e ao mesmo tempo auroral – que se parece mais com a Urgeschichte de Overbeck do que com um campo disciplinar, o jovem Carchia instalou seu lugar de estudioso com sua pequena obra-prima Orfismo e tragédia (1979). Alguns anos depois, seu genial trabalho sobre o nascimento do romance (Da aparência ao mistério, 1983) iria ulteriormente definir – ou esfumaçar – seus limites. De acordo com uma inata sensibilidade política à qual, no início, não eram estranhas simpatias anárquicas, o que sempre estava em questão nesse limiar pré-histórico, todavia, era a própria história do ocidente, que, nos traços de Reinhardt e de Meuli, Carchia lê como uma luta – trágica e cômica ao mesmo tempo – pela aparência. Isso pois a contemplação e o des-encanto da aparência, nos quais ele identifica o legado supremo da filosofia antiga, já estão sempre se revertendo em mistério ou mistificação, segundo um diagnóstico cuja pertinência hoje é fácil de ser reconhecida. E se algo define a cifra incomparável de seu estilo, seu gesto ao mesmo tempo leve e singularmente decisivo, é justamente a severidade com que ele soube compreender a liberação das aparências como tarefa genuinamente filosófica. Nos últimos trabalhos – A fábula do ser. Comentário ao Sofista (1997) e O amor do pensamento (2000) – essa severidade atinge sua máxima limpidez e, além da Estética, a filosofia da arte parece resolver-se integralmente em arte da filosofia. Por isso, o nome de Carchia se inscreve de pleno direito no registro dos poucos nomes que contam no pensamento italiano dos últimos trinta anos, ao lado de Giorgio Colli, Furio Jesi e Enzo Melandri.

 

 

Do Orfismo a Walter Benjamin

 

Nascido em Turim em 1947, Gianni Carchia morreu em Vetralla no ano passado [2000]. Companheiro de estrada de outro grande pensador “à parte” da cena italiana, Furio Jesi, a quem era vinculado pela lição comum de Albino Galvano, Carchia deixou uma rica produção filosófica. Entre suas obras lembramos aqui de Orfismo e tragédia. O mito transfigurado (Celuc, 1979; depois republicado, em 2019, pela Quodlibet, edição a partir da qual sairá a tradução brasileira pela N-1); Estetica ed erotica. Saggio sull’immaginazione (Celuc, 1981); La legitimazione dell'arte (Guida, 1983); Dall'apparenza al mistero. La nascita del romanzo (Celuc, 1983); Il mito in pittura. La tradizione come critica (Celuc, 1987); Retorica del sublime (Laterza, 1990); Arte e bellezza. Saggio sull’estetica della pittura (Il Mulino, 1995); La favola dell’essere. Commento al Sofista (Quodlibet, 1997); L'estetica antica (Laterza, 1999); L'Amore del pensiero (Quodlibet, 2000); Nome immagine. Saggio su Walter Benjamin (Bulzoni, 2000; depois pela Quodlibet, 2009). É preciso não se esquecer, todavia, do grande trabalho de Gianni Carchia como tradutor de Adorno, Marx, Benjamin, Reiner Schürmann e Hans Blumenberg.  

 

Texto de Giorgio Agamben publicado no suplemento Alias, de Il Manifesto, de 7 de julho de 2001, p. 18.  

Trad.: Vinícius N. Honesko

terça-feira, 1 de junho de 2021

A prevenção. O panfleto sobre o fascismo do anarquista Luigi Fabbri



 

Andrea Cavalletti

Bolonha, 20 de novembro de 1920: os socialistas venceram mais uma vez as eleições e o maximalista[1] Enio Gnudi está pronto para assumir; a cerimônia iria transcorrer no dia seguinte. Porém, chega à delegacia um pequeno manifesto, que também é afixado pelos fascistas em todas as esquinas: recomendam que as crianças e as mulheres fiquem distantes do centro e das ruas principais, prometem uma batalha. O que acontece no dia 21 é conhecido, assim como o que aconteceu na cidade e na região interiorana da Emília Romana: sobre isso, é certo, fala Angelo Tasca em seu famoso livro; mas em 1922, muito antes de Naissance du fascisme,[2] publicado em Paris (1938), e também antes que a editora Mondadori publicasse O massacre do Palazzo d’Accursio,[3] de Vico Pellizari (1923), o episódio tinha estado no centro do “ensaio de um anarquista sobre o fascismo”, cuja publicação pela editora Cappelli foi organizada por Rodolfo Mondolfo: era A contrarrevolução preventiva, de Luigi Fabbi, autêntica obra-prima de lucidez política que hoje reaparece, preparada de modo admirável pela Assembleia Antifascista Permanente de Bolonha, pela Edições Zero in Condotta.

Nascido em Fabriano em 1877, amigo de Malatesta, preso e identificado como anarquista já com dezessete anos, autor de vários panfletos e de uma crítica ao leninismo, Ditadura e revolução, várias vezes vítima de agressões por parte das esquadras fascistas, Fabbri, que então ensinava em Corticella, é uma testemunha muito próxima e aguda daqueles dias:

“(...) depois do início pacífico da cerimônia na sala comunal, aparece[m] na sacada voltada para a praça o prefeito (...) e as bandeiras vermelhas, e em suas direções foram disparadas as primeiras rajadas. A tragédia começou imediatamente. Todos os que tinham armas, incluindo a força pública, começaram a disparar como loucos; foram lançadas bombas, e no interior da Prefeitura, na sala, entre as balas que entravam pelas janelas quebrando vidros e quadros, os gritos, a confusão mais apavorante, houve aqueles que perderam completamente a cabeça (...) e acrescentaram tragédia à tragédia, disparando contra os bancos da minoria" (onde se sentavam os fascistas).

O veterano nacionalista Giulio Giordani foi morto. Entre os socialistas morreu uma dezena de pessoas, foram quase sessenta os feridos. Mas se por um lado Giordani se torna o símbolo da "redenção da Itália”, por outro, também se torna o da “violência vermelha". As esquadras fascistas não tinham mais obstáculos.

Fabbri, por sua vez, observava: “Em política tem razão quem vence, mesmo se está errado (...) é fato que em 21 de novembro foi uma vitória fascista; a responsabilidade dos fascistas nos acontecimentos não diminui em nada sua vitória, aliás, a aumenta. Estar errado e vencer é, substancialmente, no terreno realista, vencer duas vezes...". E Bolonha, cidade de Zanardi,[4] o “prefeito do pão", dos spacci comunali[5] e dos preços controlados, do Ufficio Case[6] e das grandes intervenções de escolarização, agora é a cidade de uma derrota traumática e dupla: torna-se o berço do fascismo. E, nesse livrinho atualíssimo que na ocasião os esquadristas tiveram que queimar, torna-se o cenário de uma aguda análise.

Livres das retóricas e das obrigações do partido, os anarquistas, mais do que todos os outros, souberam dizer a verdade. E esta, sabe-se, nunca é politicamente indiferente ou inútil, e não tem apenas efeitos imediatos. Assim, disse a verdade Camillo Berneri, o primeiro a descrever em Mussolini grande ator (1934, mas agora editado pela Spartaco) os contornos do moderno divo das massas, descrevendo a crise do parlamentarismo como transformação espetacular da política. E disse a verdade Luigi Fabbri ao dirigir o olhar para as pequenas mas essenciais mudanças das formações sociais, e estabelecendo não a crônica triste, mas uma verdadeira microfísica do poder fascista. O nascimento do fenômeno novo e brutal se prolonga para ele no passado recente da Europa (a Grande Guerra), mas também se desdobra numa história do momento, feita de cumplicidade e de erros, medos, omissões fatais e cegueiras inadmissíveis. E se o fenômeno fascista revela uma fisionomia única, é porque responde a uma função específica: justamente a “preventiva", que o inscreve na prática securitária e o torna sobretudo um “verdadeiro instrumento de governo”.

É certo que o fascismo gozou desde o início, e em Bolonha em particular, da colaboração da polícia, amplamente empenhada nas prisões dos socialistas, dos anarquistas ou dos simples operários na repressão de todo "complô contra a segurança do Estado". Mas, observa Fabbri, o fascismo também nasce do autoritarismo, das violências das Ligas vermelhas, das extorsões perpetradas por seus dirigentes: onde de fato se pratica a filiação forçada, onde “todo o socialismo consiste em ser organizado para receber mais, (...) para votar para o deputado que defenda os direitos da liga ou para a administração (...) que dê mais trabalho à associação laboral"; nesses casos as massas aceitam por conta própria o líder da liga, “mas nem sempre o amam”; aí, nesse caldeirão de interesses e ressentimentos, estão sendo preparadas inúmeras reviravoltas.

Onde a política é sinônimo de cuidado e segurança, ordem sindical ou policial, aí está o fascismo, como sócio fiel ou possibilidade implícita. Seu nascimento, poderíamos dizer, situa-se no cruzamento de dois dispositivos: o estatal, ou melhor, a proteção violenta da propriedade, e o do sindicato dos funcionários, que afirma e defende outras vantagens. Apesar de sua inimizade aparente, os dois dispositivos têm em comum uma única matriz protetiva-securitária (declinada em nome da Propriedade e do Trabalho), e conspiram juntos. Com o fascismo, sua síntese monstruosa, aparece um sindicato aliado explícito da polícia e que é capaz de prometer, “como as ligas vermelhas, o posicionamento e a defesa dos salários", mas também de manter essas promessas em virtude de suas relações privilegiadas com os patrões. É uma defesa dupla, ambígua (da pequena burguesia em crise, dos operários desempregados, mas também do poder que os explora e ameaça), que será, ao mesmo tempo e necessariamente destrutiva. Dirigido não contra este ou aquele partido, mas por todos os lugares e geralmente “contra a classe operária como classe”, o fascismo logo se revela uma arma desproporcional, um organismo violento que ganha vida própria "e, como tal, não pode aceitar se suicidar, apesar do caráter ilógico de sua situação"; nas margens dos fascistas já enquadrados, cresce com efeito uma massa de simpatizantes, agricultores, lojistas, empregados, jornalistas... massa cinzenta na aparência, mas de todo modo perigosa, “que como todas as massas, uma vez lançada continua avançando sozinha, e não retorna por vontade própria".

Fabbri entregou à tradição política o conceito de contrarrevolução preventiva, o qual, explicam os organizadores, emaranha-se de forma contínua na história do século XX: usado nos anos 30 pelos revolucionários na Espanha, será, por exemplo, retomado por Alexandre Koyré em 1945, quando terá de explicar a especificidade do totalitarismo, também por Daniel Guérin, depois pelo Marcuse de Counterrevolution and Revolt e, por fim, pelo último Debord. Mas Fabbri também mostrou como a prevenção coincide, para o Estado, com a violência sem limites, articulando, na aurora do fascismo, uma verdade irrevogável: "retardada (...) a catástrofe chega, porém tremenda e extremamente maior”. Ele morrerá em Montevidéu em 1935, sem ver até onde o impulso fatal levaria. Mas, nas páginas de seu livro, e naquela multidão obtusa, a Itália ainda pode se espelhar.          

 



[1] N.T.: O Programa de Erfurt, aprovado durante o Congresso do Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD) em 1891, em Erfurt, era dividido em duas partes: o programa máximo e o programa mínimo. Maximalistas eram os socialistas que propunham a realização do programa máximo, qual seja, a tomada de poder por parte do proletariado e a revolução social. Nesse sentido, maximalista tem sempre a conotação de "revolucionário" dentro dessa conjuntura histórica do socialismo.

[2] N.T.: Em 1938, quando publica Nascimento do fascismo, Tasca já está há 12 anos em Paris, para onde emigrou. Além disso, em 1929, em razão de sua oposição ao Stalinismo, foi expulso do – então clandestino – Partido Comunista da Itália.

[3] N.T.: Palazzo d’Accursio é onde fica a sede da prefeitura de Bolonha.

[4] N.T.: Francesco Zanardi foi o primeiro prefeito socialista de Bolonha entre 1914 e 1919.

[5] N.T.: Os spacci comunali, também chamados de negócios de Zanardi, foram armazéns municipais de venda de alimentos criados por Zanardi, em 1914, com o intuito controlar a disparada do preço dos alimentos após o início da Primeira Guerra Mundial.

[6] N.T.: Escritório municipal das casas. Tratava-se de uma secretaria municipal, também criada durante o mandato de Zanardi, responsável pela gestão dos contratos de aluguel na cidade e pela organização das questões sanitárias e de saúde pública ligadas à habitação.

 

Texto publicado pela primeira vez no suplemento Alias, de Il Manifesto, em 20 de março de 2010. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko

A contrarrevolução preventiva - Prefácio a Luigi Fabbri

 


Entre 1921 e 1922, diante do fenômeno perturbador do esquadrismo fascista, o editor bolonhês Licinio Cappelli começou a impressão de uma série de instant books que comporiam uma “coleção" intitulada “O fascismo e os partidos políticos": já em 1921 saiu O fascismo e a crise italiana, do católico liberal Mario Missiroli e, no ano seguinte, O fascismo: dados, impressões, notas, do socialista Adolfo Zerboglio e As origens da missão do fascismo, do esquadrista Dino Grandi com introdução à "coleção" do filósofo socialista Rodolfo Mondolfo; depois, O fascismo visto por republicanos e socialistas, com intervenções de Guido Bergamo, Giuseppe De Falco, Giovanni Zibordi; e, por fim, A contrarrevolução preventiva, de Luigi Fabbri, com o subtítulo editorial Ensaio de um anarquista sobre o fascismo. De fato, só o texto de Fabbri representa um primeiro autêntico "ensaio” sobre o fascismo, é claro que não "acima da luta”, como ele declara aludindo ao volume pacifista Au-dessus de la mélée, de Romain Rolland, mas fora das perspectivas estreitas de partido e das táticas da política parlamentar. Já o título se propõe a definir objetivamente o fenômeno, aliás, a renomeá-lo: não “impressões", não "o fascismo visto a partir de...”, mas uma investigação que em cada linha e a partir da crônica minuciosa, narrada com o gosto vivo do relato, procura remontar à forma social do fascismo como "contrarrevolução preventiva". Fabbri observa de longe, até veste a túnica auto-irônica do "profeta”, observa no presente o futuro e também nos fala, com lúcida e surpreendente vitalidade. Ao reimprimir este ensaio, a Assembleia Antifascista Permanente de Bolonha não pretende propor uma operação arqueológica ou memorialística, nem instituir sumárias analogias entre o fascismo histórico e nossa inquietante atualidade, feita de violências neofascistas, patrulhas, populismo, racismo, leis autoritárias e manipulação revisionista da memória. Acreditamos, porém, que este livro, ainda que com seu estilo simples e modesto, encerre uma lição importante e de todo eficaz a respeito das estruturas do poder contemporâneo e sobre as estratégias do fascismo.

Em 1922, Luigi Fabbri completava quarenta e cinco anos, era professor de escola fundamental em Corticella, na província de Bolonha, e militante anarquista há mais de vinte anos. No pequeno subúrbio bolonhês, o “mêster Fabbri” era um personagem que gozava de muita consideração, igual e contrária à do pároco, e por isso sofrera intimidações e ataques por parte dos fascistas. Sua voz é sobretudo a de uma testemunha que viu uma cidade "vermelha” como Bolonha se tornar, no espaço de poucos meses, uma fortaleza, aliás, o berço do fascismo e da reação antiproletária. Pouco depois, em 1925, ele será um dos três professores do ensino fundamental a recusar o juramento de fidelidade ao regime de Mussolini e, depois disso, rumará ao exílio, primeiro em Paris e depois em Montevidéu, onde morrerá em 1935, na hora mais escura da noite do século XX. Não é preciso aqui seguir o homem, mesmo porque assim já o fez com perspicácia e sensibilidade a filha Luce Fabbri em Luigi Fabbri. História de um homem livre (Pisa, Biblioteca Franco Serantini, 1996)[1], mas é importante sobretudo descrever brevemente a sorte singular da Contrarrevolução preventiva, cujo título, adverte Luce Fabbri, “teve tanta fortuna a ponto de se tornar um lugar comum para a definição do fenômeno”. Apesar de, no fim de 1922, os fascistas terem destruído as cópias ainda não vendidas do livro, tanto que hoje sobrevivem nas bibliotecas italianas menos de trinta exemplares da edição original, a tese do ensaio escrito com pressa nos últimos e tumultuados meses de 1921 teve desde o início uma grandíssima ressonância. Assim, enquanto o nome de Fabbri logo tenha caído no esquecimento, o conceito de "contrarrevolução preventiva” atravessa toda a história intelectual do século XX. Habent sua fata libelli, também os livros têm seu destino.

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De fato, a fortuna da análise de Fabbri foi imediata. Diante de um fenômeno então novo e difícil de interpretar, a Contrarrevolução preventiva ia além de toda condenação moralista das violências esquadristas e delineava a formação de uma cultura reacionária de massa promovida pelo Estado e pela burguesia “com a tripla ação combinada da violência ilegal fascista, a repressão legal do governo e a pressão econômica derivada do desemprego”. Para Fabbri, tratava-se de mostrar os “coeficientes" e os "fatores” que ligavam o esquadrismo aos novos sistemas repressivos do poder estatal, político, cultural e econômico: as violências fascistas não eram um fenômeno isolado e episódico, mas uma função fundamental da “reação antiproletária” como reversão preventiva da luta de classes por meio da qual a burguesia, sem renunciar às aparências da legalidade e do liberalismo, agredia as conquistas operárias e disciplinava a sociedade. Assim, desde 1923, a Conferência comunista internacional de Frankfurt anexava ao protocolo do debate uma avaliação do Fascismo italiano como "uma contrarrevolução preventiva (vorbeugende Konterrevolution) diferente da contrarrevolução clássica enquanto apela a slogans pseudo-radicais".[2] E isso diz muito sobre como os movimentos revolucionários europeus eram, nos anos 20, um âmbito extraordinário de trocas e de debates além inclusive das contrastantes experiências ideológicas e organizativas. Um ano depois do livro, a fórmula proposta por Fabbri começava a ressoar nas diversas línguas da Europa anárquica, socialista e comunista.

Mas mais instrutivo para nós hoje é considerar a reação da cultura fascista ao livro de Fabbri. Com a Contrarrevolução preventiva ele havia renomeado o Fascismo delineando com vivacidade o emaranhado de interesses econômicos, coberturas institucionais e mitologias deterioradas sobre as quais se sustentava. Havia ilustrado como fator determinante de seu sucesso a fragilidade do socialismo reformista e legalista. Nunca nomeava Mussolini. Não havia usado as palavras do poder para falar do poder. Contra esse penetrante retrato de primeira hora do Fascismo, saia em Milão, em 1923, um pilar do culto fascista da personalidade: O homem novo, de Antonio Beltramelli. Para Fabbri, o Fascismo era um agregado heterogêneo de ódio anti-operário, vantagens patronais, ambições carreiristas, facções litigiosas e prepotentes: sua "fraqueza orgânica" era “o vazio de ideias sobre o qual se apoiava”, a incapacidade de propor um modelo qualquer de sociedade que não fosse "o arbítrio instável e contraditório dos indivíduos, dos grupos inorgânicos, dos interesses cegos, das vontades impulsivas, não unidas por uma ideia, mas por um ódio, apenas pelo desejo destrutivo”. Por isso, o Fascismo tinha necessidade de “vãs palavras retóricas”, de “fórmulas vagas”, de mitologias e “símbolos" unificadores. E Fabbri é excepcionalmente atento também ao desmascarar a ofensiva simbólica do Fascismo e ao mostrar sua função complementar em relação à prática da violência esquadrista. Não surpreende que justamente a capacidade de decompor e redefinir o Fascismo como “contrarrevolução preventiva" irritava e indignava Beltramelli, e este não acha nada para contrapor a Fabbri senão a retórica prolixa do “Duce” e do “homem novo”, capaz de plasmar a história com a “sua paixão mortal e magnífica”:

"Observei, ademais, como em muitos dentre os estudos publicados recentemente sobre as origens e o desenvolvimento do Fascismo alguns autores procuram colocar a figura de Benito Mussolini em último plano, ou dela nem ao menos falam, como faz, por exemplo, o anarquista Luigi Fabbri em sua monografia intitulada A contrarrevolução preventiva. Meias palavras piedosas que nada fazem e nem agridem, porque ainda que todas as condições favoráveis do mundo se deem para o nascimento de um movimento histórico, se não aparecer o Homem destinado e aquele que possa se somar a seu fascínio, à obstinada força de sua vontade, ao vigor de seu engenho, ao orgulho de sua coragem – condições nas quais ele se faz pregoeiro do novo verbo e vive a paixão desse verbo desesperadamente, além de tudo no mundo, a ponto de preferir o último silêncio à falência dessa sua paixão mortal e magnífica –, se esse homem não aparecer, a humanidade não poderá se beneficiar das condições favoráveis que em vão se mostraram e em vão foram vividas".[3]

A Contrarrevolução preventiva é um livreto de 100 páginas. Mas para apagar seu discurso lúcido e rigoroso o Fascismo teve que destruir todas as cópias que encontrou e a ele contrapor um volume oratório e retórico de mais de 600 páginas com uma imensa tiragem como, justamente, é O Homem novo.
Não se trata de algo que diga respeito apenas ao passado. Também hoje o esquadrismo simbólico dos neofascistas é complementar a seu esquadrismo real. Não são apenas as agressões, os esfaqueamentos, os homicídios (registrados no site www.ecn.org/antifa/). São também aqueles gestos que se passam por provocações artísticas ou iniciativas culturais, com a cumplicidade de jornalistas famintos por notícias quentes e até mesmos amigos escondidos atrás das costas dos neofascistas. Por exemplo, em dezembro de 2008, por ocasião do aniversário do Massacre da Piazza Fontana,[4] que a Assembleia Permanente lembrava com uma manifestação, CasaPound[5] procurou apresentar em Bolonha um livro-entrevista com o terrorista de direita Pierluigi Concutelli, um dos fundadores do movimento Ordine Nuovo, a organização responsável pelo massacre: um caso de provocação explícita e de reivindicação alusiva. Alguns meses depois, em Milão, no aniversário do assassinato de Eugenio Curiel, partigiano judeu morto pelos agentes da República em 24 de fevereiro de 1945, os mesmos desconhecidos picharam com verniz vermelho a lápide comemorativa e sobre ela colocaram 30 balas de calibre 30: outro caso de reivindicação alusiva ou, se quiser, de intimidação. Entre as várias iniciativas dos esquadristas simbólicos há também esta história difundida pela CasaPound: fala sobre um simpatizante homossexual do movimento, P.D., de 45 anos, de Castelli Romani, que, no processo de submeter-se a uma operação para troca de sexo, pedia “uma garantia por parte da cúria bispal em relação a seu desejo de virar freira e entrar para um convento”... Os jornais, sempre condescendentes com os “fascistas do terceiro milênio”, difundiram a notícia, mas se tratava apenas de uma grande mentira – declara CasaPound – para criticar o Partido Democrático “que muda de pele a cada duas semanas”. Ou, antes, para ofender a escolha trans, comparando-a a um partido que já não tem identidade: uma ofensa alusiva, um insulto apenas simbólico. De forma análoga, em fevereiro de 2009, em Palermo, diante da sede do coletivo Malefimmine, apareciam escritas ameaças como “collettivo Maletroie”, assinado por CasaPound, e "compagna quando ce vedi te se bagna”.[6] Também não nos esqueçamos de que o romance futurista de Filippo Tommaso Marinetti, Mafarka, funda-se sobre a descrição sádico-erótica de um estupro coletivo: “Escreveu assim ‘O estupro das negras’ pois de um grande furor tórrido de luxúria e brutalidade a grande vontade heroica de Mafarka pôde brotar", declarava Marinetti em 1910. E o fórum de CasaPound se chama justamente vivamafarka...

Ainda hoje a nova “contrarrevolução preventiva" ativa é uma estratégia que associa ao mesmo tempo a violência extralegal, as conveniências institucionais, a manipulação midiática, o nacionalismo racista e sexista, a cultura intimidadora do esquadrismo simbólico.

Mas voltemos ao passado remoto. De fato, é importante sublinhar como a análise de Fabbri contribuiu para a formação de uma consciência antifascista revolucionária na Europa desde os anos 20 e 30 do século passado. Também na Espanha de 1936 será justamente a lição de Fabbri que permitirá a crítica de toda interpretação do conflito civil como simples “guerra do antifascismo contra o fascismo” e considerá-lo, pelo contrário – escrevia Horacio Badaraco em 1937, citando Fabbri –, como uma irrenunciável "guerra social” operária contra a "contrarrevolução preventiva" guiada pelo generalíssimo Francisco Franco.[7] Não é preciso multiplicar aqui os exemplos e basta dizer que até mesmo Alexandre Koyré, o grande estudioso de Galileu e de Newton, irá refletir, em 1945, sobre a especificidade do nazifascismo como exemplo de “quinta coluna” e de “traição" da oligarquia burguesa contra a sociedade civil:

"Se mesmo com essa ajuda não consegue realizar seus planos, a oligarquia dirigente da sociedade burguesa se transformará em ‘inimiga interior’ e a ‘quinta coluna’ aparecerá. [...] ela é, essencialmente, um fenômeno de contrarrevolução, aliás, de forma mais exata, de contrarrevolução preventiva. Ela é também, e também de forma essencial, um fenômeno de traição."[8]

Mas aí a memória do livro de Fabbri já havia sido apagada e o conceito de “contrarrevolução preventiva", declinado das mais diversas maneiras, havia se tornado patrimônio comum do antifascismo europeu como sinônimo de ditadura e totalitarismo. A fórmula havia se afastado de seu autor.

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Depois de 1945, a derrota do nazifascismo e a estabilização bipolar do segundo pós-guerra pôde tornar obsoleta a tese da "contrarrevolução preventiva” como interpretação histórica de um regime autoritário já deposto. Ainda assim, a invenção terminológica de Fabbri encerrava uma profunda intuição das novas formas repressivas da sociedade burguesa: com o Fascismo, a contrarrevolução não vinha depois de uma subversão social para revertê-la e restaurar com força o regime anterior, mas devia prevenir toda possibilidade de revolta; não era mais um evento colocado no tempo, mas se tornava uma função permanente que se antecipa aos fatos: "a própria ideia de constituir núcleos de 'audazes do povo' foi preventivamente reprimida”. Todavia, a definição cunhada por Fabbri, mesmo sem nenhuma marca de autor, não saiu do trilho. Fugido da Alemanha nazista para o Estados Unidos em 1934, Herbert Marcuse – que na juventude havia militado no partido socialdemocrata alemão – retoma e rearticula a categoria analítica da "contrarrevolução preventiva" ("preventive counterrevolution”) depois das insurreições globais de maio de 1968. Herdando-o do debate alemão dos anos 1920, Marcuse reinterpreta e estende o conceito de “contrarrevolução preventiva" como eixo fundamental da dialética contemporânea entre contestação e repressão, entre a "contrarrevolução" e a “revolta”. Na abertura de Counterrevolution and Rivolt, de 1972, um dos livros-chave dos anos 1970, ele assim descrevia a resposta capitalista à desestabilização produzida pelos novos movimentos sociais em escala planetária:

“O mundo ocidental chegou a um novo estágio de desenvolvimento; neste ponto, a defesa do sistema capitalista impõe, no interior e no exterior, a organização da contrarrevolução que opera, em suas manifestações extremas, os horrores do regime nazista. [...] Trata-se de uma contrarrevolução em larga medida preventiva, inteiramente preventiva no mundo ocidental, onde não há nem revoluções recentes para serem anuladas nem novas revoluções no horizonte. Ainda assim, o medo da revolução, que constitui seu denominador comum, vincula-se nos vários estágios e aspectos à contrarrevolução, percorrendo toda sua gama, das democracias parlamentares às ditaduras abertas, passando pelos estados de polícia. O capitalismo se reorganiza para enfrentar a ameaça de uma revolução que seria a mais radical da história, a primeira verdadeira revolução histórico-mundial”.[9]

Além das descontinuidades exteriores, para Marcuse a história do século XX tinha de ser relida de forma unitária como a aproximação de diversas formas históricas de “contrarrevolução preventiva" segundo três fases sucessivas: 1) a ascensão dos fascismos na Europa, caracterizada pela “liquidação" violenta de “toda uma geração de representantes revolucionários da classe operária", pela “delegação da soberania econômica ao aparato estatal fascista”, pela transformação das classes subalternas em massas “uniformizadas” e convencidas pela propaganda de seu “privilégio" como nação em relação ao "sacrifício" de grupos estrangeiros, inferiores e marginais; 2) a estabilização pós-bélica, marcada pela reorganização do sistema capitalista sob a hegemonia estadunidense, pela divisão concordada do mundo em duas áreas de influência, pelas políticas de coesão e de controle cultural para normalizar as condutas dissidentes; 3) a revolta dos anos 1970, contra a qual readquire uma nova centralidade o aparato de polícia: no interior, como estratégia de contraste preventivo dos impulsos revolucionários (espancamentos, fichamentos e discriminações), no exterior como containment policy contra os movimentos de liberação nos países coloniais, para evitar a difusão concomitante de “dois, três, muitos Vietnãs" nas periferias do mundo e nos centros urbanos do Ocidente.[10] Nessa última fase, escreve Marcuse, "as forças da lei e da ordem foram transformadas em forças acima da lei”. Todavia, nos Estados Unidos o peso da repressão não se volta à “classe operária", mas aos fermentos de oposição radical, acima de tudo "às universidades e aos militantes de cor", com o desdobramento que espraia na sociedade “um grande exército de agentes à paisana". É ainda uma "contrarrevolução preventiva”, mas, para Marcuse, seria errado falar genericamente de “regime fascista”:

"O fator decisivo é outro: trata-se de compreender se a fase atual da contrarrevolução (preventiva), isto é, a fase democrático-constitucional, está preparando o terreno para uma sucessiva fase fascista ou não".[11]

Desde os anos 1970 essa interrogação – se "a contrarrevolução [...] pode produzir fascismo"[12] – inquieta os movimentos de protesto e a inteligência crítica que indaga sobre as formas do domínio capitalista. Basta citar, a título de exemplo, Michel Foucault, que mesmo criticando a concepção marcusiana do poder como simples “repressão", observava, em 1977, que "a não análise do fascismo é um dos fatos políticos importantes dos últimos trinta anos”.[13] E, ainda, nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo, de 1988, Guy Debord aludia aos massacres de estado como "uma espécie de guerra civil preventiva".[14] Mas não é este o âmbito para explorar esses desenvolvimentos e problemas.   

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Por fim, resta sublinhar uma lição de método. Muito antes da Marcha sobre Roma, na lúcida consciência da derrota e na convicção de que, para combater o mal, “é preciso encará-lo, examiná-lo", o ensaio de Fabbri apreendeu o nexo constitutivo que liga o fascismo à contrarrevolução em seu nexo constitutivo. Elucidando essa relação, Contrarrevolução preventiva de fato inaugurou um campo de pesquisas histórico-política que vai além das fortunas da fórmula que dá título ao livro. Não é um acaso se, a partir da metade do século XX até hoje, a reflexão sobre o perigo fascista repropôs várias vezes e em conjunturas diversas o problema crucial do fascismo como forma particular de contrarrevolução, enunciado com rara agudeza de olhar justamente por Fabbri.

No cruzamento entre a Contrarrevolução preventiva e o reemergir de sua problemática depois de 1968, é então de particular importância um texto do comunista libertário Daniel Guérin, Fascisme et grand capital. Escrito "depois da tomada de poder por Hitler, no início de 1933, e depois da tentativa de putsch fascista de 6 de fevereiro de 1934” (isto é, a tentativa de tomada de assalto do Parlamento francês pelas mãos dos fascistas da Action française), e publicado pela primeira vez em 1936, Fascismo e grande capital se propõe a "diagnosticar a verdadeira natureza do fascismo”: “Aos meus olhos”, escreve Guérin em 1956, “o fascismo era uma doença. Para descrever um mal novo e ainda pouco conhecido, um médico não dispõe de outra fonte a não ser comparar minuciosamente seus sintomas...”.[15] No centro de um novo momento crítico, reemerge – nos mesmos termos, mas em forma mais complexa em conformidade com a nova situação – a necessidade de examinar o mal para combatê-lo, tal como sustentado por Contrarrevolução preventiva nos primeiros anos do decênio precedente. Para Guérin, o nazifascismo representa a expressão política do "grande capital” que – diante da crise – recusa e suprime os próprios antigos ideais de "liberdade” e “democracia”, então incompatíveis com a hegemonia burguesa: “assim, a burguesia destrói raivosamente seus velhos ídolos e os teóricos da antidemocracia se tornam os mestres de seu pensamento”.[16] Mussolini declarava em 1926: “Nós representamos a antítese clara, categórica, definitiva [...] dos princípios de 1789”. E Goebbels, em 1933: “O ano de 1789 será apagado da história”. Mas justamente o caráter contrarrevolucionário dos fascismos europeus e sua relação orgânica com o grande capital colocava a questão sobre se tais regimes poderiam ser representados ainda sob novas formas. Também nesse caso, Fabbri está um passo à frente: no último capítulo do livro, ele prognostica que o Fascismo “cedo ou tarde acabará”, prospectando um articulado quadro das diversas formas possíveis de seu inevitável fim; e é aqui que, como em contrapartida, ele formula uma questão que nunca cessou de se recolocar em diversas circunstâncias até hoje: a possibilidade do Fascismo se reproduzir depois de sua queda.

"Tudo isso vem a confirmar o já dito: que o fascismo é um ramo do grande tronco estatal-capitalista, ou uma filiação dele. Combater o fascismo deixando imperturbado seu perene genitor, aliás, iludindo-se ao querer encontrar neste um defensor contra aquele, significa continuar a ter sempre às costas, a cada dia mais pesados e opressivos, tanto um quanto outro. Matar o fascismo é possível apenas se a ação de defesa contra ele, imposta pelas circunstâncias, for acompanhada do ataque a suas fontes: o privilégio do poder e o privilégio da riqueza. Mas matá-lo é necessário, e é preciso que o proletariado chegue a isso diretamente e com todas as suas forças, porque se o fascismo apenas estivesse dormindo ou fosse reabsorvido pelas instituições atuais, ele sempre, ou ao menos mais facilmente, poderia se reproduzir. A burguesia aprendeu o modo de se servir dessa arma; e se o proletariado não tira da burguesia a vontade de usá-la, demonstrando com os fatos que é capaz de arrancá-la de suas mãos, ela, mesmo se por ora depusesse essa arma, voltará a empunhá-la na primeira ocasião."

À tese conclusiva de Fabbi seria possível aproximar agora duas frases lucidamente antecipadoras – retiradas do prefácio de Guérin a Fascismo e grande capital – que demarcam o espaço de um problema ainda mais decisivo para nosso presente. Março de 1945: "Amanhã, as grandes ‘democracias’ poderão recolocar com toda natureza o antifascismo no ferro-velho. Desde já, essa palavra mágica, que fez com que os trabalhadores se insurgissem contra o hitlerismo, é considerada com suspeita e aversão tão logo sirva para agregar novamente entre si os adversários do sistema capitalista". Novembro de 1956: "Portanto, não é preciso deixar-se hipnotizar pelo perigo de um retorno ofensivo do fascismo ‘puro’: a contrarrevolução poderia reaparecer de outras formas”.[17]  Nesse sentido, não se deve esquecer que na Itália houve uma forte continuidade entre Fascismo “reabsorvido pelas instituições" e República. Em 1960, foi verificado que 62 dos 64 prefeitos[18] em serviço haviam sido funcionários fascistas. O mesmo valia para todos (todos...) os 135 delegados e seus 139 vices. Assim, depois de 1968, vieram os massacres.

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Hoje, talvez tenhamos atingido um limiar histórico que poderá dar uma resposta à velha pergunta renovada por Marcuse. Aos nossos olhos foram pouco a pouco reativados na Itália alguns dos dispositivos do nazifascismo que operaram entre 1938 e 1945: o rastreamento de corpos clandestinos que devem ser expelidos, a detenção em campos por ter cometido o "crime" de existir, os muros de separação étnica, a instituição de salas de aula separadas para "estrangeiros", o acesso diferenciado aos tratamentos médicos, uma nova política sempre mais obscura e agressiva de "saúde pública". Nos anos setenta do século XX a fascistização era um fenômeno sobretudo vertical estatal, de continuidade institucional entre Fascismo e República, de tentativas de golpe de estado, de bombas nas praças, de complôs e segredos obscuros. Agora, pelo contrário, é um fenômeno difuso, capilar, em grande parte à luz do dia, articulado sobretudo sobre o racismo e alimentado pela TV, governos, revistas, administrações locais. Consideremos quantos seguranças, policiais civis, policiais armados, conselhos comunais foram protagonistas, nos últimos anos, de agressões ou medidas racistas contra ciganos e imigrantes: mortes anormais, surras, torturas, prisões injustificadas, intimidações, separações forçadas, ordens anti-imigrantes, prepotências de todos os gêneros. Na Itália, o racismo já se parece com uma Bolzaneto[19] a céu aberto. E foi uma “estratégia da tensão” adaptada aos novos tempos: não mais vertical, mas difusa, de baixa intensidade. Os homicídios fascistas e racistas são agora um massacre em parcelas. Pessoas inconscientes e indefesas mortas por causa de um cigarro, de uma palavra, de um pacote de biscoitos.

Justamente o clima de violência xenófoba e “securitária", fomentado nestes anos por políticos, prefeitos, juízes e jornalistas, deu garantias para grupos e partidos neofascistas e consentiu a reorganização da direita. Não se trata apenas de uma consolidação operativa, mas também simbólica. Pensando bem, o atual esquadrismo neofascista não teria vigor se não houvesse um disciplinamento autoritário difuso, o qual é preciso obstaculizar em cada uma de suas formas: a respeitabilidade agressiva, o patriotismo, a propaganda insistente do “medo” racista e homofóbico, o familiarismo opressor, o sexismo, a vontade de punir quem não faz filhos brancos itálicos e católicos, a perseguição contra a prostituição e o aborto, a manipulação da memória pública. Aparatos estatais e organizações neofascistas colaboram atualmente para construir uma cultura de massa do ódio e da discriminação contra os presumidos "diferentes” e para convencer as “classes expropriadas” – essa é uma das características do neofascismo segundo Marcuse – a se considerar "como população privilegiada em relação aos ‘grupos estrangeiros’ sacrificados”.

Por isso, acreditamos que hoje o antifascismo não constitui apenas um resíduo esgotado do passado, mas um campo vivo e irrenunciável de práticas e resistências contra os processos de disciplinamento social, na escola, no trabalho, na vida privada, na família, na sociedade. Como também foi mostrado no recente Festival social das culturas antifascistas em Bolonha, entre 29 de maio de 2 de junho de 2009, trata-se de apreender os desafios da contemporaneidade e experimentar o antifascismo do século XXI. Catilina, o pseudônimo que Fabbri usou na juventude, agora nos fala. Catilina ainda fala.

 

Bolonha, 12 de outubro de 2009.

Assembleia Antifascista Permanente – Bolonha

https://assembleantifascistabologna.noblogs.org/ (para as atividades entre dez/2006 e jan/2010) e https://staffetta.noblogs.org/ (para as atividades a partir de jan/2010)         



[1] Sobre a vida e a figura de Fabbri é possível fazer referência aos estudos citados na bibliografia ao final do presente volume.

[2] KPD, Der internationale Kampf des Proletariats gegen Kriegsgefahr und Faszismus. Protokoll der Verhandlungen der internationalen Konferenz in Frankfurt am Main vom 17. bis 21. März 1923, mit einer Einleitung und einem Nachwort [von A. Losowski], Berlin, Internationaler Verlags-Anstalten, 1923, p. 45. Sobre isso, ver K.-E. Lönne, Il fascismo come provocazione: “Rote Fahne” e “Vorwarts” a confronto con il fascismo italiano trai l 1920 e il 1933, Napoli, Guida, 1985, p. 104 nota. Já Fabbri fala da “linguagem desembaraçada e pseudo-subversiva" do Fascismo.

[3] A. Beltramelli, L'Uomo nuovo, Roma-Milano, Arnoldo Mondadori, 1923, pp. 354-355.

[4] N.T.: Atentado terrorista realizado no dia 12 de dezembro de 1969 na Piazza Fontana, centro de Milão, na sede do Banco Nacional da Agricultura, resultando em 17 mortes e 80 feridos.

[5] N.T.: Movimento neofascista italiano organizado a partir de 2003 e que em 2008 constitui-se formalmente como “associação de promoção social” e partido político. Em 2019, seu presidente declara extinta a atividade como partido político. Ainda assim, continua ativo como um movimento.

[6] N.T.: Respectivamente, algo como: “coletivo Maleporcas” e " companheira, quando for nos encontrar, tome banho."

[7] H. Badaraco, Con la cara vuelta a España, in “Spartacus”, n. 8, 1 de mayo de 1937.

[8] A. Koyré, La cinquième colonne, Paris, Editions Allia, 1997, pp. 44-46 (o artigo apareceu no número 2-3 da revista “Renaissance” de Nova Iorque em 1945).

[9] H. Marcuse, Controrivoluzione e rivolta, traduzione di S. Giacomoni, Milão, Arnoldo Mondadori, 1973, pp. 9-10.

[10] Cfr. H. Marcuse, Teoria e pratica, traduzione di C. Bonardi, Milão, Shakespeare & Company, 1979, pp. 45-47. Uma síntese útil do conceito marcusiano de “contrarrevolução preventiva" é a de R. Laudani, Oltre "L'uomo a una dimensione”: movimenti e globalizzazione nel pensiero di Hebert Marcuse, in La catástrofe e il parasita. Scenari della transizione globale, a cura di G. Bonaiuti e A. Simoncini, Milão, Mimesis, 2004, pp. 241-244.

[11] H. Marcuse, Controrivoluzione e rivolta, cit., pp. 33-34.

[12] L. Castellina, Intervista con Marcuse: in America è in atto una “controrivoluzione preventiva", “Il Manifest”, 28 de novembro de 1972.

[13] M. Foucault, Poteri e strategie, a cura di P. Dalla Vigna, Milão, Mimesis, 1994, p. 22.

[14] G. Debord, Commentari sulla società dello spettacolo e La società dello spettacolo, con una nota di G. Agamben, Milano, Sugarco, 1990, pp. 68-69. Ed. brasileira: G. Debord, A Sociedade do Espetáculo; Comentários à sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1998, trad. Estela dos Santos Abreu.  

[15] D. Guérin, Fascismo e gran capitale, traduzione di G. Galli, Roma, Erre emme, 1994, p. 45.

[16] Ivi, pp. 257-275.

[17] Ivi, pp. 40 e 50.

[18] N.T.: Na administração pública italiana, prefetto é o representante do governo territorial de província e regiões metropolitanas ligado ao Ministério do Interior. Difere da figura do sindaco, a qual está mais próxima da figura do prefeito brasileiro.

[19] N.T.: Referência à brutalidade das forças de ordem do Estado durante os protestos contra a reunião do G8 em Gênova em 22 de julho de 2001. Cerca de 240 pessoas foram levadas ao quartel de Bolzaneto e submetidas a violências físicas e psicológicas pelos agentes do governo.

Luigi Fabbri. La controrivoluzione preventiva. Riflessione sul fascismo. Milano: Zero in condotta, 2009. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko