1. As biografias sexuais aqui reunidas pertencem, em certo sentido, ao gênero que Foucault, em um de seus textos mais felizes, batizou de “vidas infames”. Trata-se de vidas de indivíduos de outro modo desconhecidos que o encontro com o poder – nesse caso, o poder médico – arrancou da noite e do silêncio, iluminando-as bruscamente com seu facho de luz antes de capturá-las e inscrevê-las em seus registros.
A literatura a que pertencem não é das letres de cachets e das fichas policiais, das quais Foucault extraiu suas vidas infames, mas daquela muito vasta e pouco estudada dos “casos clínicos”. E as marcas por meio das quais o olhar do poder fixa-lhes a fisionomia numa instantânea e lacônica fulguração não são o delito ou a impiedade, a vagabundagem ou a bebedeira, mas o traço único e obstinado que Richard von Krafft-Ebing, seu paciente arquivista, chamou de psychopathia sexualis. E como a zombaria do sacristão ateu Jean-Antoine Touzard e a incessante e obscura vagabundagem de Mathurin Milan brilham nas páginas transcritas por Foucault com uma espécie de opaco e deslumbrante esplendor, também as existências sem nome que o poder médico pudicamente repertoriou com a inicial X., e a especificação “menina de sete anos”, “senhor de oitenta anos de alta condição social”, “mordomo de cinquenta e três anos”, “casada de vinte e quatro anos”, “artista de trinta e seis anos”, “de antiga família nobre”, “trinta e oito anos, artesão”... parecem nos interpelar, pelo único traço – a perversão sexual – que o biógrafo lhes consignou, com uma intensidade e uma exigência à qual não é fácil se subtrair.
2. O interesse do gênero “caso” é que este coloca um evento singular, uma existência, uma ação humana concreta, em relação imediata com uma norma ou com uma figura geral. Isso é verdade para os “casos clínicos”, mas também, de algum modo, para seu precedente teológico, isto é, o “caso de consciência”. À medida que a confissão auricular recebe sua forma canônica, assiste-se na Europa – e, mais tarde, nas colônias – ao florescimento de uma imponente literatura destinada a servir de auxílio aos confessores. O “caso de consciência” é um caso imaginário, mas concreto até nos detalhes mais minuciosos (o que, por vezes, pode tornar sua leitura reservada e pouco edificante), no qual um comportamento habitual ou uma ação individual são colocadas em relação com a figura pecaminosa em que o confessor deve – ou não deve – inscrevê-los. O que aproxima o caso de consciência do caso clínico – e, portanto, de nossas biografias sexuais – é que – trate-se de anomalia fisiológica ou de perversão sexual, de declínio da vontade ou de doença do corpo – toda uma existência é levada à norma por meio da descrição e análise de um único gesto e de um único traço.
Walter Benjamin certa vez observou que a grandeza da comédia e, quase, sua superioridade em relação à tragédia é que, nela, o caráter do personagem se desenvolve luminosamente no esplendor de seu único traço, que não deixa subsistir nenhum outro visível junto de si. Enquanto o destino apresenta o homem na infinita e enigmática complicação de sua culpa, a comédia, fixando-o no único traço do caráter, expõe e afirma sua irredutível inocência. Nada de mais beato e inocente, nesse sentido, do que essas vidas que a catalogação patológica fixou para sempre na sonâmbula tenacidade com que incuravelmente perseveram em seu desejo.
3. A menina de seis anos “nervosa”, com uma pequena contração no canto das pálpebras, que “gosta de se esfregar nos móveis, de modo que seus órgãos genitais rocem em ripas finas ou mesmo em bordas, como no encosto das cadeiras e especialmente numa penteadeira que se encontra no quarto” e, surrada pelo pai, “faz a mesma coisa em segredo”; a senhorita de vinte e três anos, “pequena e graciosa”, com movimentos teatrais, gestuais e com frequência frenéticos” e o “olhar um pouco sonolento”, que “já com onze anos enfiava as mãos no bolso de um primo, tentando de maneira inadequada apreender as partes de baixo” e que “também nos outros só vê sexualidade”; o fraco sádico de trinta e quatro anos “nascido de pais piedosos”, educador profissional de crianças, que confessa com sentenciosa sabedoria: “Quando vejo um menino gracioso vestido justamente como gosto, me vem o pensamento irresistível de que os meninos, enquanto usam calças curtas, são feitos propositalmente para apanhar com a baqueta o mais frequente e fortemente possível”; o engenheiro “casado e pai de três filhos”, diretor e ator de uma comediazinha que Krafft-Ebing chama não se sabe o porquê de masoquista, e cujo monótono cenário, assim que entra no quarto onde a mulher o espera, é agarrado pelas orelhas e arrastado pelo quarto com estas reprimendas: “O que faz aqui? Não sabe que deveria ter ido à escola? Por que não vai para a escola?” e, ao final, munido de um cesto com pão e fruta, depois da última bofetada consuma o prazer gritando: “Vou! Vou!”; o cândido homossexual, “filho de um funcionário” que, depois de ter minuciosamente descrito ao psiquiatra suas orgias com três homens contemporaneamente (sodomia passiva e ativa e felação passiva), declara implacável: “Jamais transei com uma garota, porque isso me parece sempre um ato contra a natureza”; o honesto fetichista por sapatos, que detidamente especifica que “é absolutamente necessário que os calçados sejam de couro: os sapatos de verniz ou de seda e algodão não têm para mim nenhum atrativo”; o serviçal walseriano que, numa carta que é uma pequena obra-prima, depois de ter se referido à abnegação com a qual lustra todos os dias dezesseis pares de calçados e botas femininas, apenas ironicamente se lamente de receber das senhoras como prêmio a peremptória e suave ordem: “Carlo, deixe-se levar um par de tapas da senhorita Marta”...
O desejo é imediato, inocente, preciso. E, ao menos em regra, obstinado e perseverante.
4. Quando Krafft-Ebing, docente de psiquiatria primeiro em Estrasburgo e depois em Graz e Viena, publicou, em 1886, sua Psychopathia sexualis, o livro teve um sucesso inesperado, foi traduzido em sete língua e conheceu doze edições com o autor ainda em vida (ele morreu em 1902). Mais do que suas teorias médicas, igualmente desinteressantes se envelhecidas (como a aversão invencível pela masturbação, suposta causa de homossexualidade e degeneração fisiológica) ou ainda atuais (como a insistência no caráter hereditário da homossexualidade), para nós é notável sobretudo sua paixão taxonômica. O objetivo do livro, com efeito, é eminentemente classificatório. O mapeamento patográfico do impulso sexual se ordena, assim, segundo os dois eixos falta (anestesias)/excesso (hiperestesia) e precocidade/retardo (os paradoxos, isto é, o aparecimento do impulso sexual quando – segundo o autor – não deveria estar presente, ou seja, na infância e na velhice). Mas o âmbito de longa duração mais interessante em que o autor exercita seu gênio taxonômico são as parestesias, isto é, o voltar-se do desejo contra e além da norma (para significa em grego “contra” ou “ao lado”). Contra ou além do objetivo normal (sadismo, masoquismo – ao que parece foi Krafft-Ebing a cunhar esses termos –, fetichismo, exibicionismo) ou “ao lado” do objeto próprio (homossexualidade, pedofilia, gerontofilia, autoerotismo). Aqui, Krafft-Ebing já tinha dois grandes predecessores: Sade e Fourier, infinitamente mais irônicos e sóbrios do que ele. Mas é justamente sua franqueza de arquivista que torna suas biografias sexuais, escrupulosamente transcritas pela frequente e viva voz do paciente, tão preciosas. Sua coletânea coincide com o momento em que o homem ocidental não se limita a descobrir a sexualidade (que havia sido descoberta várias vezes e outras tantas esquecida porque, em suma, pouco interessantes), mas pela primeira vez acredita entrever nela a chave do segredo mais cioso de sua existência. A sexualidade se torna assim o reagente que faz aparecer no palimpsesto da vida a minúscula cifra do indivíduo, seu mais obstinado “conhece-te a ti mesmo”.
5. Os teólogos distinguem a vida que vivem (vita quam vivimus), isto é, o conjunto dos fatos e dos eventos que constituem nossa biografia, e a vida pela qual vivemos (vita qua vivimus), o que torna a vida vivível e lhe dá um sentido e uma forma. Em toda existência, essas duas vidas se apresentam divididas e, todavia, é possível dizer que toda existência seja a tentativa, com frequência fracassada e, ainda assim, insistentemente repetida, de realizar sua coincidência. Deixando-se de lado os projetos para chegar a essa unidade – isto é, a felicidade – no plano coletivo, desde as regras conventuais aos falanstérios, o lugar em que a busca pela coincidência encontrou seu laboratório mais sofisticado é o romance moderno. E, neste, especialmente nos meticulosos desenhos anatômicos de um contemporâneo de Kraft-Ebing (apenas três anos separam seus nascimentos): Henry James. Seus personagens nada mais são do que o experimento em que a vida que vivemos incessantemente se divide da vida pela qual vivemos – e, ao mesmo tempo, e também de forma incessante, volta a tocá-la. Assim, sua existência se cinde, por um lado, na série de fatos, talvez casuais e no geral inassumíveis, objeto da episteme mundana por excelência, o palavrório; por outro, ela é a “besta na selva”, algo que sempre esteve à sua espera, espreitando nas curvas e encruzilhadas da vida, e que, um dia, inevitável e inequivocamente, atacará para mostrar a “verdade real” sobre eles.
As biografias compiladas nos mesmos anos por Krafft-Ebing parecem escapar totalmente a essa cisão e desmentir ponto por ponto a hipótese de James. Nelas, a besta na selva já atacou desde o início – ou, sobretudo, desde sempre já desvelou sua natureza fantasmática. E se chamamos de beatitude ou vida eterna o limiar de indiferença em que a vida que vivemos se identifica sem resíduos com a vida pela qual vivemos, então essas biografias sexuais são, de algum modo, o registro da vida beata, cujos selos patográficos foram, um a um, abertos pelo desejo. Isso pois o que está em questão na vida que os anônimos protagonistas estão vivendo é a vida pela qual vivem, e esta foi jogada e esquecida sem reservas na primeira. É exatamente essa coincidência beata o que se mostra ao poder médico como perversão, e é exatamente esta a presa que ele procura capturar em sua míope e implacável taxonomia.
Giorgio Agamben, La belva nella giungla, in Richard von Krafft-Ebing, Biografie sessuali. I casi clinici della Psychopathia sexualis di Richard von Krafft-Ebing, trad. Piero Giolla, Neri Pozza, Vicenza, 2006.
Imagem: Hugo Fouilloy: Bestiário, manuscrito. c. 1280. J. Paul Getty Museum, Los Angeles.