sexta-feira, 2 de novembro de 2007

KARÚMI & MU-GA, MU-I




KARÚMI (a leveza)
‘karui’, adjetivo, é ‘leve’. Como uma pluma. Em seus últimos anos, dizem, Bashô insistia muito neste conceito. ‘Karúmi’ é não pesar a mão. Não deixar a arte aparecer, na obra de arte. ‘Karúmi’ é fazer as coisas de tal forma que o necessário e o arbitrário, que estão sempre indissoluvelmente ligados na obra de arte, não possam ser distinguidos. É conseguir dar a impressão que um haikai que levou muito tempo para atingir sua forma final pareça nascido na hora, ‘espontaneamente’. É ocultar a arte, fazer desaparecer o processo, fazer a arte parecer não-arte. ‘Karúmi’ é a qualidade que, dissolvendo e dissipando a fronteira entre natureza e cultura, faz o artefato cultura parecer e aparecer como um produto da natureza. ‘Heiter ist die Kunst’ límpida é a arte, disse o poeta alemão Schiller.
MU-GA, MU-I (o não-Eu, o não-fazer)
Intimamente ligados ao conceito de ‘karúmi’ os conceitos artísticos, mas religiosos na base, de ‘muga’ e ‘mu-i’. ‘Mu-ga’ é ‘não-Eu’. ‘Mu-i’ é não-Fazer’. São conceitos taoístas incorporados pelo Zen Budismo. ‘Mu-ga’ é ‘despersonalização”, a condição para a verdadeira criação artística, que se dá, pura, quando a ‘persona’, a máscara convencional do nosso eu cai e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza, genérica e coletiva, impessoal e anônima. A arte ocidental (principalmente a poesia) sempre colocou ênfase exagerada na expressão do ‘eu’, tendência exacerbada pelo romantismo. ‘Mu-i’, ‘não-fazer’, é um conceito tipicamente taoísta. E é um princípio dinâmico. Um fazer taoísta é um fazer conforme o Tao, conforme a lógica intima do processo das coisas, (...) vale dizer, um não-fazer. No terreno da criação artística, ‘mu-i’ favorece a espontaneidade sábia, a entrega ao processo, a obliteração e anulação de um ego que quer fazer algo, dando lugar a um criar que se assemelha mais aos processos da natureza, um deixar-se ir, uma Abertura. Tributário desta concepção, o músico de vanguarda americano John Cage, que usa as indeterminações aleatórias do I-Ching, como método de disciplinamento (a mortificação) do Ego. A obra é um fruto de conjunções e conjunturas que independem de um eu que quer e, como quer, faz. Disse um sábio chinês: ‘faça as coisas como elas mesmas fariam, se pudessem'.




LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. pp. 87-88. Foto: E. Erwitt.

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