sábado, 15 de dezembro de 2007

In the Realms of the Unreal


Em novembro de 1972 Nathan Lerner, um fotógrafo e designer que vivia em Chicago, abriu a porta do quarto no 851 Webster Avenue no qual tinha vivido por quarenta anos o seu inquilino Henry Darger. Darger, que tinha deixado o quarto alguns dias antes para se transferir para um albergue para pessoas idosas, era um homem tranqüilo, mas certamente perturbado. Tinha sobrevivido até então no limite da miséria lavando pratos em um hospital e os vizinhos certas vezes o escutavam falando sozinho, imitando uma voz feminina (uma menina?). Saia raramente mas, no curso de seus passeios, era visto procurando na sujeira como um mendigo. No verão, quando em Chicago a temperatura faz-se improvisamente tórrida, sentava na escada externa da casa, com o olhar fixo no vazio (assim o mostra a única fotografia recente). Mas quando Lerner, em companhia de um jovem estudante, entrou no quarto, achou-se diante de uma descoberta inesperada. Não tinha sido fácil percorrer o caminho entre os montes de objetos de todos os gêneros (novelos de barbantes, vasilhas vazias de bismuto, retalhos de jornais); mas, amontoado em um ângulo sobre um velho baú, havia uma quinzena de volumes datilografados encadernados à mão que continham uma espécie de romance de quase trinta mil páginas, com o título eloqüente In the Realms of the Unreal. Como explica o frontispício, trata-se da história de sete meninas (as Vivian girls), que comandavam a revolta contra os cruéis adultos Glandolinians, que escravizam, torturam, estrangulam e estripam as meninas. Mais surpreendente ainda, foi dar-se conta de que o solitário inquilino era também um pintor, que por quarenta anos tinha pacientemente ilustrado em dezenas e dezenas de aquarelas e painéis de carta por vezes com até três metros de comprimento o seu romance. Aqui paisagens idílicas, nas quais as meninas privadas, no gênero munidas de um pequeno sexo masculino, vagam absortas ou jogam entre flores e maravilhosas criaturas aladas (as serpertentes Blengiglomean), alternam-se (por vezes na mesma folha) com cenas sádicas de inaudita violência, nas quais os corpos das meninas são presos, espancados, destroçados e, por fim, abertos para deles extrair as vísceras ensangüentadas.
Aquilo que aqui nos interessa de maneira particular é o genial procedimento de composição de Darger. Uma vez que não sabia pintar nem mesmo desenhar, ele recorta imagens de crianças de álbuns de história em quadrinhos ou de jornais e as cola com uma pequena vela. Se a imagem é muito pequena, a fotografa e a aumenta conforme as suas necessidades. Ao fim, o artista dispõe de um repertório formular e gestual (variações seriais de uma Pathosformel que podemos chamar nympha dargeriana) que pode combinar como quiser (através de collage ou decalque) nos seus grandes painéis. Ou seja, Darger representa o caso extremo de uma composição artística unicamente por Pathosformeln, que produz um efeito de extraordinária modernidade.
Mas a analogia com Warburg é ainda mais essencial. Os críticos que se ocuparam de Darger sublinharam os aspectos patológicos da sua personalidade, que não teria jamais superado os traumas infantis e apresentaria traços indubitavelmente autistas. Muito mais interessante é indagar a relação de Darger com as suas Pathosformeln. Certamente ele viveu por quarenta anos totalmente imerso no seu mundo imaginário. Como todo verdadeiro artista, ele não queria simplesmente construir a imagem de um corpo, mas um corpo para a imagem. A sua obra, como a sua vida, é um campo de batalha em que o objeto é a Pathosformel “ninfa dargeriana”. Esta foi reduzida à escravidão pelos malvados adultos (frequentemente representados em vestes de professores, com toga e chapéu). Isto é, as imagens das quais é feita a nossa memória tendem, no curso da sua transmissão histórica (coletiva e individual), incessantemente a enrijecer-se em espectros e, portanto, trata-se de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, é sempre já ameaçada e pronta para assumir uma forma espectral. Liberar as imagens do seu destino espectral é a tarefa que tanto Darger quanto Warburg – no limite de um essencial risco psíquico – confiam, o primeiro, ao seu interminável romance, o outro, à sua ciência sem nome.

AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 19-22. Rapidamente traduzido por Vinícius Nicastro Honesko.










Um comentário:

Anônimo disse...

Olá

Você assistiu ao Documentário Animado feito por Jessica Yu? O trailer está no You Tube, e o filme acho que dá para adquirir na Amazon. Acho que vale a pena. Adorei o artigo que traduziu, me fez compreender ainda melhor o próprio filme.

Um abraço