sábado, 20 de agosto de 2011

Sobre a saída


Comecei a escrever há tempos. O texto seria sobre o cheiro dos caules úmidos das cerejeiras, o frio, o cinza, o dia nublado, os barulhos matinais, a manhã nascida e morta no mesmo instante. Mas não consegui. Era um rumor, um murmúrio de morte que ecoava nas minhas letras. O instante era propício, mas o perdi. Uma confusão mnemônica me fazia crer que deveria escrever sobre coisas que vi, ouvi e senti durante uma caminhada matinal. Ledo engano... a vontade era de reavivar cadáveres, de suspirar mais uma vez por chamas que já se extinguiram. Como as cartas da mãe de Luís, personagem de Cortázar (aliás, por que não lia Cortázar antes?), que atordoavam o filho em Paris, parecia que hoje estava recebendo a todo instante cartas inesperadas de personagens que por minha vida (a ficcional) passaram. Sabia, desde cedo, que a substituição da propaganda de biquinis (ah... a moça do outdoor, tão linda e que me fazia lembrar de um amor perdido...) por uma de relógios não era despropositada. Era Chronos, o deus do tempo, da roda temporal que agora estava ali, presente naquelas esferas que cretinamente tomavam o lugar da bela moça. Ingênuo, não conseguia ver que tudo, moça e relógios, não diziam nada do amor e do tempo, mas tão somente das mercadorias em que haviam se transformado amor e tempo nos nossos dias.
O vazio vulgar das mercadorias, sua pura figuração num panteão dos deuses da técnica, não tinha sido algo por mim notado no correr da vida. Ingênuo, tolo... porém jamais inocente. Qualquer inocência já está condenada. Era esse o pensamento dos últimos dias e meses. Não tinha como me esquivar das inquietações que os relógios no outdoor me causavam. Pensei, pensei muito sobre a out door, sobre a saída, a exit. Curioso como na língua inglesa a coisa do fora, a ex it, toma o lugar de um caminho de saída. Sair de algo, sair da coisa, ex it. Mas, para mim - não assumindo um circuito heideggeriano -, o que era a coisa? Talvez não houvesse resposta, mas as elucubrações não poderiam ser impedidas de sair de mim naquela caminhada em que, agora sim, sentia o perfume dos caules úmidos das cerejeiras.
Caminhava com Mark Sandman a cantar sobre a noite (canção velha e conhecida dos meus dias nublados) e sobre a memória. Uma lembrança que cabia num bolso, uma lembrança de lugar nenhum, uma lembrança de nada (uma lembrança do agora, portanto). E talvez fosse a claridade com que via o passado que me assombrava, que me dizia também com clareza que o agora era uma mentira. Aliás, nada diz o agora, nem o agora que é nada. Tudo era uma questão de exit. Como sair do jogo mnemônico? Como não me deixar guiar pela rotação dos ponteiros imóveis daqueles relógios do outdoor? Como não pensar que ali estava a figura dos biquinis cortininha na moça cuja feição me acalentava a memória? Enfim, tudo era uma questão de sair, de descortinar as impressões forjadas nas esferas protetivas da memória.
Kronos, não o tempo, o titã, mastigava os filhos por medo, por não conseguir encarar seu fim. Para os romanos era Saturno, quem, aliás, representa a forma da melancolia. Debruçar-se sobre a própria fragilidade, prostrar-se e negar-se ao movimento, deixar-se cooptar pelo corrosivo ciclo de Chronos. Melancólico é o próprio deixar-se impressionar por aquelas esferas que tentam apreender o tempo ao quantificá-lo. E eis que a saída, a coisa do fora, torna-se então um empenho que deve tomar-me, que, na ebriedade na qual agora escrevo, pode ser o nada do agora que é nada. Sem tentar jogar com os termos dessa impressão matinal que se reflete como memória de um dia numa mente entorpecida, num devaneio, vejo como Blanchot tentava pensar o fora e, sem rodeios, vejo como o exit é inóspito e, às vezes, um atrativo. Porém, como fazer do atrativo não somente um atrativo - uma espécie de fuga -, mas um meio de viver? Não, meu caro, não meu caro, não há um fora acalentador, como o cantinho iluminado pelo abajur onde há pouco terminava de ler o seu Cortázar, mas somente o deserto onde temos que resistir e, nesse resistir, construir algo ao qual possamos chamar vida.


Imagem: Francisco Goya. Saturno devorando um de seus filhos. 1819-23, Museo del Prado, Madrid.

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