quinta-feira, 18 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre mapas


Salvus. Todo mapa está desenhado desde o princípio daquilo que ele representa. Aliás, nenhum mapa reconstitui ou representa algo (um espaço, um domínio, uma dimensão); não grafa senão a forma daquilo que é salvo da não existência, salvo na falência (em erro, portanto). Em busca de refúgio, tentamos escrever mapas a todo tempo. Murilo Mendes desenhou seus delírios de desconjuntado colado ao tempo na expectativa de cartografar-se. Deixou apenas traços. Mário Quintana, talvez encantado, sonhou em seu mapa uma rua que nem em sonho podia traçar. Borges, inventariando a infâmia, pensou os mapas desmedidos e inúteis. Restaram ruínas. Restaram traços. Tudo é traço: as letras das cartas que endereçamos à amada (e não são as cartas o mapa impossível do amor?), as marcas nesse pequeno livro que preencho despreocupado em uma sala de espera qualquer, o tetragrama sagrado. Esse deus - que, como lembra Scholem, pode ser chamado, mas não pronunciado - que se tornou letra para, na arca da aliança, seguir a cartografia errante do povo que havia escolhido. A sós no deserto, os hebreus corriam os olhos pelo rolo sagrado para tentar decifrar, nas letras, o caminho para a terra prometida (e a promessa? Não seria o mapa impossível do porvir?). Clamando no deserto, os profetas (megafones da promessa do divino) mapeavam os trilhos para a salvação. Salvamos, nos toques transformadores da pena sobre o papel - no grafema -, nossa perspectiva de permanência nos lindes (e não lides) que são as letras - abstrações minimizantes que tornam macroscópica nossa imagem grafada. Nenhuma redenção comporta mapas. Estes, como cartas que são, não passam de espaços meio, em trânsito, a caminho de alguém que não se sabe se os lerá. Aprofundados, meus mapas deslocam-se pelos espaços que tentam marcar (tal como as quatro letras divinas) e, perdidos na impossibilidade de gravar-grafar uma verdade (espacial e histórica - e, lembra-nos Derrida, mesmo a verdade sobre algo teria sua história falseável), lançam-me na interdição absoluta: não é possível fazer fronteira no deserto, não é possível salvar o que se deixa tocar apenas como linde, limiar, entre determinações. Assim, só nos resta perceber a miséria do inóspito de todo mapa: sua condenação à errância. 

Imagem: Jacopo de' Barbari. Mapa de Veneza. 1500. Museo Correr, Venezia.

3 comentários:

gui disse...

Porra, que socada. Não falo nem do texto, mas das horas que eu perdi absorto nesse blog e que agora me fazem nem ligar mais pra começar a escrever com "porra". Há tempos que nada me pegava assim de surpresa, me causava inveja e me fazia sentir vivo e impaciente. Embora isso soe como aquela patacoada babaca de querer elogiar, tô aqui escrevendo só pra poder dizer qualquer coisa, dar um grito, dizer que, sim, vocês tão vivos, escrevem e isso importa pra mim. Então, em vez de tentar parabenizar por qualquer coisa, quero resumir tudo nisto: obrigado.

Abração.

marginário disse...

v. mostra que a leitura é um exercício de potência, ou seja, vida. obrigado pelo comentário e pelos ecos. abrazo!

Lauro Rocha disse...

Faço das palavras do Gui as minhas. Complemento com DO CARALHO. Blog fabuloso, mesmo.