quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Da angústia noturna


Na escuridão do quarto, a angústia entra disfarçada de sombra. Passa sorrateira pelas visões daquele que já não é mais do que um corpo moribundo, que sonha em cores um idílico passado cheio de vitalidade. Talvez a ideia dantesca seja, em seu caráter visceral, logo, presente, a única proposição capaz de dar conta do ingresso da angústia nos espaços de descanso: o inferno é a memória de Deus. A memória, no silêncio da noite, responde pela abertura da porta e um vazio absoluto preenche aquele quarto em que jaz o moribundo. Mas, dizia M. Eckhart, "estar vazio de todo o criado é estar cheio de Deus". Nietzscheanamente, o corpo descobre-se deus, e não um mero professor pestilento e desencantado. O vazio da angústia, que ali, naquela escuridão massacrante, era a ausência de qualquer rosto senão na forma fantasmática das imagens pré-oníricas, era similar ao choro de Odisseu à beira-mar: o herói que olha para o mar e percebe a inclemência da natureza, e, num fugaz instante, tem aguda ciência da morte e da fragilidade de seu corpo, que, em breve, sem deixar sombras ou vazios, voltará ao deserto de onde veio. A memória divina, que agora era também a sua, mostra-se, nesta noite de angústia, como aquilo que é: um imenso inferno descolorido e vazio em que, com pincel e guache, alguns fantasmas tentam deixar suas marcas impossíveis... 

Imagem: Michael Wolgemut. Circe e Ulisses. 1493.

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