quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Estudo sobre a memória V


Provo do gosto inesquecível do lótus e, nesta ilha mediterrânea, passo a esquecer da minha viagem pelos mares impossíveis, e da ilha não desejo sair. O aconchego do esquecimento, o gosto doce dos frutos, colocam-me uma pergunta: memória de que? E um argentino, tal qual um Tirésias do sul, discorre ao meu ouvido: "o tempo é o rio que me carrega, mas eu sou o rio; é o tigre que me rasga, mas eu sou o tigre; é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo." Descubro-me um lotófago e passo a consumir a mim mesmo com o veneno doce do passado - este, o passado, que agora passa ao largo, dançando ao canto das sereias, enquanto, absorto, devoro do lótus que, belo antídoto, aplaca o veneno. Sentado à beira-mar, observo as ondas que me trazem sonhos impossíveis de sonhar, posto que jamais lembrados; observo também as gaivotas que planam com as correntes de vento, e acabo me dando conta de que também elas me trazem sonhos, estes, já sonhados. Ulisses, que a todo instante lutava contra o esquecimento, também à beira-mar, certa vez chorou diante desse grande deserto; sem me dar conta, deixo-me rasgar ainda mais pelo tigre e, não deixando cair nenhuma lágrima, volto a lembrar da viagem do herói: penso que, ao final de sua jornada, Ulisses não se deixaria mais levar pela comoção diante da infinitude do mar, mas, como o fez, a este grande deserto de sal retornaria com o desejo de passar a vida esquecendo de Ítaca para, a cada retorno, lembrar-se de que dela deve sempre continuar a esquecer... 

Imagem: Parmigianino. Circe e os companheiros de Ulisses. 1527. Galleria degli Ufizzi, Firenze.

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