quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A nostalgia não é suficiente, mas é um bom começo



Entrevista com Giorgio Agamben
Organizada por Valeria Montebello

Nesta entrevista, gentilmente concedida por Giorgio Agamben, discutem-se alguns dos temas mais caros a Pier Paolo Pasolini, seja do ponto de vista teorético, seja do ponto de vista pessoal. Agamben conhecia Pasolini e interpretou o papel de Filippo em O Evangelho segundo São Mateus. A conversa tem como centro a anarquia do poder, o desaparecimento dos vaga-lumes e a potência aristotélica, com a intenção de trazer à vida esses conceitos, evocando cenários. Das lembranças de Agamben do presente, através da instrumentalização da comida, da decadência das cidades, até o futuro, acenando a um novo modo de habitar e a uma política que possa estar à sua altura. (Valeria Montebello)

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Valeria Montebello:
Pasolini foi um lúcido analista do Poder que definia “sem rosto” e de sua congênita arbitrariedade. A propósito da origem anárquica que o diferencia – anarquia que, no fundo, também seria seu fim – e sua referência a “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, no livro Nudez (“a única verdadeira anarquia é aquela do poder”), como se insere o ingovernável, “aquilo que está para além do governo e até mesmo da anarquia”? Podemos pensá-lo, antes, como uma forma de resistência, de princípio, em vez que de reação?

Giorgio Agamben:
O poder se constitui capturando em seu interior a anarquia, na forma do caos e da guerra de todos contra todos. Por isso, a anarquia é algo que se torna pensável somente se conseguimos, em primeiro lugar, expor e destituir a anarquia do poder. Klee, em suas aulas, diferencia o verdadeiro caos, princípio genético do mundo, do caos como antítese da ordem. No mesmo sentido, penso que se deva diferenciar a verdadeira anarquia, princípio genético da política, da anarquia como simples antítese da arché (em seu duplo significado de “princípio” e “comando”). Mas, em todo caso, ela é algo que se tornará acessível apenas quando uma potência destituinte tiver desativado os dispositivos do poder e tiver libertado a anarquia que eles capturaram.

Montebello:
Micciché,[1] anos atrás, propunha ler a “Trilogia da vida” com “Saló”, incorporando os últimos filmes numa “Tetralogia da morte”. De fato, o último filme pode ser visto também como a mescla entre impulso sádico ao gozo e pulsão de morte, o imperativo do gozo como forma de destruição da vida?

Agamben:
Diria que num certo momento Pasolini talvez acreditasse poder aceder diretamente à anarquia. “Saló” é certamente uma representação da anarquia do poder, mas uma representação desesperada, que não procura arrancar a anarquia das mãos do poder, como se Pasolini não conseguisse mais distinguir a sua anarquia daquela dos quatro hierarcas malvados. De um modo mais geral, nos últimos anos ele parece querer ultrapassar a obra para chegar imediatamente aos seus fantasmas (“Por que fazer uma obra quando se pode sonhá-la”?). Acredito que isso não seja possível e que, como você sugere – embora não ame as categorias psicológicas –, essa tentativa possa coincidir com uma pulsão de morte.

Montebello:
Inicialmente “Saló” devia ser um filme sobre um industrial milanês, que colocasse a nu a mistificação da grande produção alimentar. Sobrevive mais de um eco disso na cena do filme em que o hierarca ordena ao jovem: “então, coma a merda”. O consumidor médio come merda, é consciente disso e continua a fazê-lo. O que você pensa da EXPO, em seu logo “Alimentar o planeta, energia para a vida” e em sua quase obrigatória tendência atual?

Agamben:
Sinto não sei se comiseração ou desprezo pela tentativa, atualmente em curso por parte de um grande punhado de miseráveis, de colocar a gastronomia, a moda e o espetáculo artístico-cultural (não a arte) no lugar da poesia, do pensamento e daquilo que resta de vida espiritual. Isso coincide, de resto – do momento em que as duas coisas caminham sempre juntas e os miseráveis também são sempre pagos – com o projeto por parte do capital internacional de transformar a Itália (que é aos poucos metodicamente vendida) num parque de férias e de passatempo gastronômico-cultural.

Montebello:
“Eu daria toda a Montedison por um vaga-lume”: o famoso desaparecimento dos vaga-lumes anunciado por Pasolini, por causa dos “refletores ferozes do poder”. Didi-Huberman fala de amizade “estrelar” entre Agamben – horizonte apocalíptico – e Pasolini – nostalgia – sob o signo do desespero do presente. Vem em minha mente a potência, o papel que tal conceito aristotélico tem em sua obra e sua possível resistência ao ato. A transparência pode acolher a luz ou permanecer em sua escuridão. Assim, parecem delinear-se vários níveis de visibilidade: há um ser exposto à luz como algo de inevitável, ou se pode pensar numa forma de resistência, a dos vaga-lumes, como a dos peixes nos abismos de que fala Aristóteles em De anima, de algo que só pode estar sob a força das trevas. Poderíamos considerar a amizade “estrelar” entre Pasolini e Agamben sob o signo da resistência. Você também afirma, de fato, que não é necessário deixar-se “cegar pelas luzes do século”, os mesmos “refletores ferozes do poder” de Pasolini e, ainda em Nudez, você escreve que olhar para “a escuridão da época” e perceber nela “uma luz que, direcionada para nós, se distancia infinitamente de nós” é a tarefa de um pensamento crítico voltado à atualidade...

Agamben:
A resistência ao moderno em nome dos vaga-lumes se produziu não por acaso numa cultura, como a italiana, em que o desenvolvimento industrial chegou atrasado. Pasolini nasceu num país cuja população era composta em 70% de camponeses e na qual o fascismo havia procurado conciliar a industrialização com o controle social. Pode ocorrer, no entanto, que justamente uma situação aparentemente atrasada, malgrado suas contradições, passe a ser em certos aspectos mais avançada do que outras, que perderam toda capacidade de resistir. Mesmo Ivan Illich, ou seja, o mais profundo e coerente entre os críticos da modernidade, provinha de uma sociedade, num certo sentido, atrasada. Apesar disso eu me lembro de ter visto quando criança um rebanho de ovelhas que percorria todas as manhãs a Rua Flaminia até a Praça do Povo, para depois entrar na Villa Borghese; a minha infância coincidiu, ao contrário, com o início do processo frenético de industrialização e destruição que se deu depois da Segunda Guerra Mundial. Diferentemente de Pasolini e de Elsa Morante (que lhe era próxima), eu não podia criar ilusões sobre a sobrevivência daquilo que num certo tempo se chamava de povo ou de criaturas edênicas não contaminadas. Às vezes, pergunto-me o que teria dito Elsa e Pier Paolo se tivessem podido ver a transformação atual dos seres humanos e de suas relações por efeito dos celulares e, mais em geral, dos dispositivos fornidos de uma tela. Minha crítica do moderno é, por isso, menos impregnada de nostalgia e tomou necessariamente a forma de uma pesquisa arqueológica voltada a identificar no passado as causas e as razões do que aconteceu. Mas não acredito que seja por isso menos radical. Em questão, em todo caso, está a compreensão do presente.

Montebello:
A propósito da decadência das cidades e das periferias que se tornam os novos centros, falemos do Pigneto,[2] bairro muito caro a Pasolini, onde caminhava entre as pessoas “pobres e reais”. Estive há pouco tempo, à noite, em Necci,[3] um local que Pasolini frequentava e, realmente, seu rosto vem à tona por todos os lados, das fotos nas paredes aos broches de 1 EURO dentro de um velha máquina de venda de gomas de mascar. Sem que pudesse fazer nada, a nostalgia tomou conta de mim. Uma nostalgia de algo que jamais conheci, mas que talvez vivi sentindo os carinhos de minha avó – com suas sábias mãos ao reconhecer as ervas nos campos, ao desenredar os fios. Penso que uma certa nostalgia de retorno, de habitação, nos une; poder ser vista como um retorno a si mesmo, como algo que diz respeito a cada um tão intimamente e, exatamente por isso, não pode senão dizer respeito a todos?

Agamben:
Vivemos uma fase de extrema decadência da cidade, no sentido que os homens parecem ter perdido qualquer relação com o lugar em que vivem. É evidente que – como acontece em muitas cidades italianas – se a cidade se transforma num assim chamado ‘centro histórico’, que só deve servir ao consumo turístico e à diversão de fins de semana, ela não tem mais razão alguma de ser. A cidade era, antes de tudo, o lugar da vida política e, ao mesmo tempo, do habitar como prerrogativa humana. Tanto a política quanto a faculdade de habitar (e não simplesmente de se alojar) estão desaparecendo, graças também às iniciativas conjuntas dos capitalistas e dos arquitetos. A nostalgia não é suficiente. Seria necessária uma nova forma de vida que possa reencontrar, ao mesmo tempo, a capacidade de habitar e a vida política. É óbvio que tanto o habitar como a política deveriam ser pensados desde o início e redefinidos. Ugo di San Vittore[4] distinguia três modos de habitar: aquele pelo qual a pátria é doce, aquele pelo qual todo solo é pátria, e, o terceiro, aquele pelo qual o mundo todo é um exílio. É necessário inventar um quarto modo e, com este, uma política que esteja à sua altura.



Publicada em “Lo Sguardo: Rivista di Filosofia”, n. 19, 2015 (III), Roma: dossiê Pier Paolo Pasolini: resistenze, dissidenze, ibridazioni. ISSN: 2036-6558. Organizada por Luciano De Fiore e Antonio Lucci. Disponível em: http://www.losguardo.net/wp-content/uploads/2015/12/2015-19-Indice.pdf (Tradução de Davi Pessoa.)


[1] Lino Micciché (1934-2004), historiador e crítico de cinema italiano.

[2] Bairro de Roma, formado a partir de 1870. Durante a Segunda Guerra Mundial foi palco de manifestações populares antifascistas.

[3] Restaurante fundado em 1924; Pasolini o frequentava com frequência durante as filmagens de “Accattone”.

[4] Ugo di San Vittore (1096-1141), teólogo, filósofo e cardeal francês.

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