sábado, 17 de junho de 2017

Estudo sobre a memória XIV

A noite sempre continua a mesma: desde os primeiros anos até esses encontros fortuitos que com ela travamos. "Os ausentes sopram e a noite é densa. A noite tem a cor das pálpebras do morto. Toda noite faço a noite. Toda noite escrevo. Palavra por palavra eu escrevo a noite", certa vez disse Alejandra Pizarnik, ela que pensava ser sua cabeça uma fumaça cinza-azulada que subia em ondas desde a ponta quase apagada de um cigarro. Os caminhos têm um sentido: rua beija-flor, rua condor, rua eurilemos, rua falcão, rua harpia, rua ibis, rua jacutinga e nesse esquadro de pássaros pelos quais me oriento desde tenra infância o mundo girou ao ponto de para fora dele me lançar. Não há mais mundo comum neste lugar que me é tão comum. Porém, ainda assim a noite continua a mesma, e, a cada volta no vazio da ordem alfabética ornitológica, passado, presente e futuro fazem uma constelação que escrevo com as letras que tentam desenhar a voz de um profeta. Um profeta que já não anuncia nada, que traz consigo apenas o grito de um anúncio que me diz que o mesmo da noite sempre será um completo outro. Também sobre esse lugar Lévi-Strauss falou algo: "De São Paulo rumo a oeste há uma linha aberta por uma companhia de colonização inglesa que funda, a cada trinta quilômetros, uma cidade. Numa delas quem por primeiro morou foi um francês." Os sentidos falavam inglês, francês e depois polonês, italiano, espanhol, mas, na noite, eles não dizem senão o silêncio: se esgarçam e, justamente, mostram o silêncio que vem da voz dos profetas (sempre, sempre une voix venue d'ailleurs). Não há ordem nos pássaros e, tal como as do morto, as grandes pálpebras desta cidade se fecham deixando apenas o absurdo do silêncio dos cantos ausentes dos pássaros: estes já não têm voz alguma e, engaiolados, nos deixam como único possível esta atividade sem esperança da escrita. Imagino cada pássaro (talvez da mesma forma como há anos imaginava) nesta estranha caminhada noturna, mas suas imagens só voltam, neste sem sentido, para me dizer que aqui jazem meus mortos, e nada mais. Apesar de tudo, e depois de um tempo, ainda escrevo com o lápis cravado no esquecimento.

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